Apontamento histórico sobre a Lagoa de Óbidos: da agricultura e pesca ao turismo

João B. Serra

O ciclo de vida da actual Lagoa de Óbidos tem a sua origem remota na Baixa Idade Média e nos começos da Idade Moderna, quando o litoral da Estremadura sofreu profundas transformações. Os aspectos mais visíveis dessas tranformações decorreram da erosão das arribas, provocada pelos ventos e pelo mar, e dos movimentos das areias e detritos transportados pelos rios e pelas correntes marítimas (estas em geral orientadas de Norte para Sul e talvez potenciadas pelas configurações rochosas dos fundos marítimos) [1] . Uma alteração climática ocorrida nos séculos XIV ou XV, traduzida em arrefecimento global da temperatura, conjugada com um possível abaixamento do nível do mar, deu origem a um forte movimento de transporte de sedimentos para as áreas litorais [2] .

[1] Pedro Gomes Barbosa, Documentos, Lugares e Homens. Estudos de História Medieval , Lisboa, Cosmos, 1991, p. 86.

[2] Virgínia Henriques, "Enquadramento Geográfico da Região de S. Martinho do Porto", in A Baía de S. Martinho do Porto, Aspecos Geográficos e Históricos , coord. de Maria Cândida Proença. Lisboa,Edições Colibri/Associação Defesa Ambiente São Martinho do Porto, 2005, p. 30-31.

Carta Hipsométrica - Planícies aluviais entre Nazaré e Peniche, segundo Virgínia Henriques ( op. cit ., p. 31). A verde, as depressões aluviais, com altitudes entre 0 e 10 metros, estiveram há 5000 anos inundadas ou cobertas pelo mar.

O certo é que cursos de água hoje relativamente pouco significativos eram rios navegáveis na Alta Idade Média. O mar recuou desde então, tendo extensas áreas outrora penetradas pelo mar desaparecido totalmente ou sido substancialmente reduzidas. Exemplo de extinção é o da Lagoa da Pederneira que no final do Neolítico chegaria a Cós, Maiorga, bordejava o Valado e Famnalicão. Exemplo de contracção do espaço inundado é o de S. Martinho, cuja laguna ainda no século XVI se estendia até Alfeizerão.

Esta mudança traduziu-se na criação de condições novas e muito propícias à fixação de populações junto ao litoral, desenvolvendo aí actividades para as quais a proximidade do mar, dos rios e das lagoas oferecia excelentes oportunidades: a pesca, a extracção de sal, a apanha de plantas marinhas, o transporte e comércio marítimos, actividades portuárias e construção naval.

Os núcleos de povoamento que surgem na Estremadura, mercê das modificações referidas, tiveram em conta as condições físicas do território e respectiva evolução, além das tecnologias disponívis. Dada a "conformação da costa, baixa, arenosa e sem abrigos", bem como a pequenez das embarcações, o trabalho no mar estava limitado a uma parte do ano. O modo de vida de muitos lugares à beira-mar era anfíbio: camponeses durante o Inverno, pescadores no Verão (deixando então a responsabilidade dos campos às mulheres) [1] .

O povoamento na margem norte da Lagoa, tanto quanto é possível reconstituir a sua trajectória, segue este padrão. A costa entre a Foz do Arelho e Salir é em arriba, pelo que os estabelecimentos humanos se localizam na encosta abrigada da Serra do Bouro, dedicando-se os seus habitantes a colonizar as terras férteis daquela vertente do Vale Tifónico virada a Leste. A aldeia da Foz que nos surge a uma certa distãncia da Lagoa, estaria nos tempos medievais mais próxima dos terrenos alagados, mas ainda assim protegida dos ventos dos quadrantes Norte e Oeste, encaixada num declive suave da encosta Sul da Serra do Bouro.

Também aqui, os seus habitantes desenvolveram um género de vida anfíbio: agricultura nos campos, pesca e apanha de limo e mariscos na Lagoa. O regime cíclico desta última - fechamento do canal de comunicação da lagoa com o mar no Inverno, abertura no Verão - certamente acentuou essa alternância, ao passo que desaconselhava quaisquer projectos portuários.

A Professora Iria Gonçalvs descreve, com base na documentação do Mosteiro de Alcobaça, as dificuldades sentidas com o assoramento progressivo da Lagoa da Pederneira [2] . "Nos séculos XIV e XV, a lagoa - afirma - sofria um processo de assoreamento que vinha já de longe e que chegava a obstruir completamente a sua barra, cortando-lhe a comunicação com o mar. Nos meados do século XV isso acontecia ainda raramente, mas quando se verificava era um contecimento deveras funesto para a economia da região. Não só o seu marisco morria, à míngua de elementos trazidos pelo mar, como todo o peixe que nela costumava entrar vindo do Oceano em busca de águas abrigadas e mansas deixava de poder fazê-lo, pelo que se perdia a maior parte do seu potencial piscatório. (...) Por isso, a necessidade de limpeza e abertura da lagoa, sempre que as areias se acumulavam na sua foz. E quando esse assoreamento tomava maiores proporções, eram mobilizados os moradores de uma vasta zona que abrangia os concelhos limítrofes da lagoa".

Poderíamos transpor esta situação para a Lagoa de Óbidos, em paralelo com a da Pederneira, embora aqui o recuo das águas tenha sido muito mais rápido. Conhece-se uma disposição do monarca João I que, nos inícios do século XV, ordenava aos concelhos de Cadaval e Atouguia o envio de gente para abrir a lagoa, sempre que tal fosse requerido pelos juízes de Óbidos. Cabe acrescentar que o encerramento da Lagoa de Óbidos tinha impacte não só sobre a actividade piscatória e mariscadora, como sobre a própria actividade agrícola: com a subida do nível das águas no Inverno, os terrenos de cultivo conquistados ao longo de gerações à floresta e ao espaço lagunar podiam ficar alagados. Seria por isso necessário defendê-los, através de sistemas de controlo, conjugando muros de terra, valas e caniços. Estas operações constituíam por sua vez um factor adicional de assoreamento das margens.

No século XIX, os trabalhos da chamada "Aberta" eram periodicamente referidos na imprensa. Durante o Inverno, a Lagoa acumulava águas e detritos arrastados pelos rios e ribeiros que nela desaguavam. No princípio do Verâo, os camponeses-pescadores da Foz do Arelho, munidos de pás e enxadas, abriam uma vala estreita em direcção ao mar, de modo a que a força acumulada da Lagoa vencesse a resistência da duna, rasgasse um canal, purgando aquele organismo que durante meses se transformara em pântano. Era uma festa, com dia marcado, que atraía a curiosidade de forasteiros. Era também, para os seus actores, uma oportunidade de melhorar a ceia com o peixe que lhes vinha morria às mãos na ânsia de vencer a torrente.

Estes equilíbrios dinâmicos e frágeis sofreram uma aceleração nos finais do século XIX e princípios do século XX, quando a ocupação humana deixou de se circunscrever ao recesso da aldeia da Foz e se alongou até ao mar.

A Lagoa de Óbidos atraira visitantes ilustres, como o Rei Carlos, que nela promovia caçadas aos patos, ou a Rainha Amélia, que apreciava os passeios de barco ali organizados em sua honra. Mas esse foi apenas o lado singular de um novo movimento. No último terço do século XIX, o conceito de vilegiatura entrou nos hábitos das classes abastadas e a praia surgiu em associação às termas como um dos dois momentos da regeneração saudável: banhos termais em Agosto, banhos de mar em Setembro.

Para se compreender como foi, nesta época, encarada a oportunidade turística da Lagoa no princípio do século passado, podemos recorrer a uma citação extraída do preâmbulo de um projecto de criação de um caminho de ferro Caldas-Foz apresentado em 1904. "A 10 quilómetros das Caldas da Rainha, há uma lindíssima praia denominada a Foz do Arelho. Numa situação única no País, junto da Lagoa de Óbidos de margens encantadoras, muito ricas em caça, goza do privilégio excepcional de oferecer aos banhistas a escolha entre a onda forte do Oceano e o remanso da Lagoa que comunica com o mar e cuja água é portanto salgada e límpida. A Lagoa é muito piscosa, prstando-se admiravelmente ao desenvolvimento desse desporto, bem como à cannotage , regatas, natação, etc., apresentando uma área de cerca de 4 quilómetros quadrados. O pitoresco da lagoa, com os seus traços caprichosos, o aprazível das suas margens, os pontos de vista, o vasto horizonte marítimo, os pinhais, a proximidade das excelentes Termas das Caldas da Rainha, cujas águas sulfurosas dão óptimos resultados no tratamento do reumatismo, gota, etc., devem necessariamente atraír a esta região muitos turistas, valetudinários, etc., bem como os capitais para a construção de vilas e "chalets", se entre esta praia e as Caldas houver um meio de transporte rápido, cómodo e económico. A comunicação faz-se actualmente pela estrada ordinária em trens, e apesar de ser este um meio de transporte oneroso e incómodo, pode dizer-se que todos os banhistas vão pelo menos uma vez à Foz, de passeio durante a sua estação de águas" [3] .

O autor deste relatório, o Engº Trigueiros de Martel, concorrente ao concurso de produção e fornecimento de energia eléctrica à vila das Caldas, apercebera-se da expectativa criada em torno da Lagoa. Muitas famílias de comerciantes e altos funcionários caldenses tinham começado a alugar casa em Setembro na Foz. São Martinho perdera pois o exclusivo como praia de férias. Na Câmara discutira-se a necessidade de prolongar a estrada da Foz até ao monte do Facho, mesmo á beira do mar [4] . Entretanto surgiam, exactamente nsse percurso, três grandes edificações: os palacetes Almeida Araújo e Francisco Grandela e o Éden Palace Hotel.

Grandela [5] deixou-se seduzir pela Lagoa em 1897, após uma viagem de burrico até à Foz. Começou as obras desse vasto conjunto (que hoje integra as instalações do INATEL) logo no ano seguinte. E enquanto povoava a sua propriedade de veados e falcões, punha-se a imaginar empreendimentos na margem da Lagoa, debruando canais como em Veneza ou Amsterdão. O Conde de Almeida Araújo [6] além de um gigantesco palacete chumbado num pequeno promontório de onde a vista domina a Lagoa e o Mar, construiu uma estação telégrafo-postal e um Restaurante, antes de falecer em Novembro de 1909. Junto ao "Restaurant", ainda deu início à construção de um Hotel, o Eden Palace Hotel, que foi inaugurado já em 1910 [7] . Luis Grandela, que o arrendou em 1923, chamou-lhe Hotel do Facho.

Foi aqui que verdadeiramente começou a história da lagoa de Óbidos como oportunidade económica e social para o turismo.


[1] Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach, Geografia de Portugal. IV. A Vida Económica e Social . Cometários e actualização de Suzanne Daveau, Lisboa, Edções João Sá da Costa, 1991,p. 1130.

[2] Iria Gonçalves, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV , Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1988, p. 274.

[3] Trigueiros de Martel, Relatório sobre o Caminho de Ferro das Caldas à Foz do Arelho e Iluminação Eléctrica das Caldas da Rainha . Lisboa, Imprensa Africana, 1904, p. 3-4.

[4] Este tema foi tratado por Vasco Trancoso na sua obra Grandela e a Foz do Arelho , Caldas da Rainha, Património Histórico-Grupo de Estudos, 1994, p. 37-39.

[5] Francisco de Almeida Grandela, 1853-1934, comerciante e industrial, proprietário dos "Grandes Armazéns Grandela".

[6] Joaquim Palhares de Almeida Araújo, 1855-1909. O título foi-lhe atribuido por D. Carlos em 1898.

[7] Vasco Trancoso, op. cit ., p. 44-47.

Foto 02 - Lagoa de Óbidos: apanha de limos (anos 30)

Foto 03 - Lagoa de Óbidos: apanha de ameijoa (anos 20)

Foto 04 - Foz do Arelho ao entardecer (anos 40?)

Foto 05 - Colónia de Férias da Foz do Arelho, 1948 (adpatação do antigo palacete de Francisco Grandela)

Foto 06 - Palacete Conde Almeida Araújo visto da arriba (anos 20?)

Foto 07 - Palacete Almeida Araujo e Posto Fiscal (anos 20?)

Foto 08 - Hotel do Facho (1948)

Foto 10 - Um Trecho da Lagoa. Foto de Joel Mira (anos 40?)

Foto 11 - Lagoa de Óbidos (no Inverno; anos 40?)

Foto 12 - Lagoa de Óbidos (no Verão: anos 40?)

Nota sobre as imagens que ilustram este estudo

As imagens que acompanham este estudo pertencem ao espólio de Fernando Daniel de Sousa, conservado pelos seus herdeiros. A sua consulta foi-me facultada por sua filha, Senhora D.ª Maria Isabel de Sousa Castro, a quem presto os meus agradecimentos. Fernando Daniel de Sousa (1896-1961) foi o mais importante - em quantidade e qualidade - editor de postais das Caldas da Rainha. Foi também o mais persistente, tendo publicou postais ao logo de tr~es décadas (20, 30 e 40). Dotado de aptidões artísticas inatas, a que não pôde dar o desenvolvimento que provavelmente desejaria, colocou nesta actividade de editor o maior empenho, sensibilidade e dedicação. Exerceu-a, em paralelo com a direcção comercial das lojas que herdara de seu pai, o comerciante João Daniel de Sousa. Editou postais a partir de fotografias dos mnelhores fotógrafos caldenses da época, como Eduardo Neves Elias, Joel Mira, Leonel Cardoso e José Neto Pereira.

Foto 01 - Vista Geral da povoação da Foz do Arelho (Bilhete Postal Ilustrado duplo), 1928