Exposição San Pedro de Alcântara, Encontro Entre Dois Continentes, em Peniche  
A década de 1780 foi marcada por convulsões políticas no Novo Mundo. A revolução americana, declarada em 1776, consuma a vitória sobre o exército inglês em 1781. A independência dos Estados Unidos da América é reconhecida em 1783. Em 1780, estala no Peru uma revolta contra o domínio espanhol, conduzida pelo chefe inca, José Gabriel Tupac Amaru. O exército colonial põe-lhe termo no ano seguinte, executando o líder e aprisionando o filho.
Em Abril de 1784, parte de Lima, Peru, com destino a Cadiz, o navio espanhol San Pedro de Alcântara. É um navio de guerra, de 64 canhões.
Vinha carregado com cobre e metais preciosos, produto da mineração do Peru acumulada nos anos anteriores (durante os quais a instabilidade originada pela guerra da independência americanae o embargo britânico impedira o seu normal escoamento para a Europa). Trazia também um conjunto de colecções de artefactos anteriores à presença espanhola, recolhidas por dois cientistas espanhóis em expedições efectuadas a grutas de uma região do Peru. Finalmente, fazia parte da carregamento do San Pedro cerca de duas dezenas de prisioneiros incas, incluindo o filho do chefe executado, Fernando Tupac Amaru.
O navio zarpou com excesso de peso, enfrentando por isso diversos sobressaltos na sua longa viagem. Quando chegou ao Chile, viu-se obrigado a deixar parte da carga e a regressar ao Peru para reparações. No Rio de Janeiro, já no ano seguinte, foi forçado a uma imobilização de 4 meses, de novo para reparações. A 2 de Fevereiro de 1786, aproximou-se da costa de Peniche e foi embater violentamente contra as rochas da Papoa. Com o choque, o casco do fundo partiu-se e o porão separou-se do resto da embarcação. O mar estava calmo. O comandante do navio foi traído provavelmente pela maré muito baixa e as imprecisões da carta de navegação. 128 pessoas, entre as quais a maioria dos prisioneiros incas, encontrou a morte no naufrágio.
O acontecimento teve uma enorme repercussão internacional e uma extraordinário incidência em Peniche. O governo espanhol não se poupou a esforços para recuperar os tesouros depositados no fundo do mar (calcula-se em cerca de 750 toneladas de cobre, prata e ouro) e contratou mergulhadores e enviou para Peniche equipas técnicas e operários. Durante dois anos, Peniche foi estaleiro destes trabalhos morosos e complexos de resgate.
Depois, lentamente, o tempo foi apagando memórias e sinais.
Em 1975, um arqueólogo francês, Jean Yves Blot, iniciou o longo processo de devolução desta história ao conhecimento. Começou pela investigação de arquivo, onde encontrou abundantes referencias, em Espanha e por toda a Europa. Passou depois ao local, onde a pesquisa se revelou mais difícil. Identificou a zona de impacte e a área onde se tinham procedido a inumação de cadáveres. Organizou campanhas arqueológicas em terra e no mar.
Ontem em Peniche, no Edifício Cultural, Jean Yves, que entretanto implicou no fascínio pelo tema a arqueóloga Maria Luisa Pinheiro, apresentou uma Exposição onde se pode seguir o trajecto e os principais resultados deste longo e persistente trabalho. A exposição é acompanhada pela edição de uma obra intitulada Peniche, Encontro entre Dois Continentes: Concerto para mar e Orquestra. San Pedro de Alcântara, 1786.
Gravura BNP
Video
Ciência Viva
Incas em Peniche
 
 
 
 
 
 
Reconstituição digital do casco do San Pedro de Alcântara  
 

Naufragio del navio de Guerra de S.M.C. el S. Pedro de Alcantara, sobre la Costa de Peniche... da autoria de Vicente Mariani, 1786 - 1799. Gravura: água-forte. Biblioteca Nacional de Portugal

 
 
   
 
Grilheta de uma dos prisioneiros incas inumados na Papoa.  
Eduardo Prado Coelho: Os amantes da Baía (29 de Janeiro de 2004)  
É possível que eu projecte sobre a recordação da praia de São Martinho do Porto imagens que nunca existiram - que a praia seja a praia onde eternamente somos, numa adolescência deslumbrada e sem fim.
Todas as manhãs corríamos à janela para ver se o tempo estava bom. Mas, enquanto chegavam notícias de que o país era banhado por um sol esplendoroso, São Martinho obstinava-se em ter uma bruma matinal, húmida e fria. "É um microclima", dizia o meu pai. É verdade que por volta do meio-dia desencadeavam-se uns ventos impiedosos que varriam as nuvens e clareavam os céus. Mas o vento instalava-se às vezes de um modo tão intenso que a boca se enchia de uma areia fina, os jornais voavam, os toldos voltavam-se sobre si próprios, as mães vestiam as crianças com casacos de malha. "É um microclima", comentava o meu pai. Mas gostávamos daquele jogo das escondidas com o calor e o sol. Gostávamos de andar com os pés a chapinhar ao longo da baía até chegar às dunas. Gostávamos da rua dos cafés, de subir até ao Facho, de ir a um bar na Nazaré ou de comer pão-de-ló em Alfazeirão, ou javali num restaurante popular da estrada para as Caldas. Gostávamos das mesas nocturnas onde a nobreza doutros tempos e a grande burguesia se lamentava das desgraças do 25 de Abril e chamava "crise" às tostas mistas com que alguns se alimentavam. Gostávamos de andar pelos montes, de ir à capela para ver o pôr do Sol.
Num dos poemas que Luís Miguel Cintra escolheu para dizer num livro-disco dedicado à poesia do Ruy Belo (e publicado pela Assírio e Alvim), podemos ler versos que evocam esta espécie de estado de graça em que a felicidade vinha do lado do mar:
"O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de Dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de Agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar."
E mais adiante:
"Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
(...)
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida."
Sei apenas que São Martinho do Porto é hoje um lugar estragado pela improvisação, o comércio cego, o mau gosto, a leviandade. O que podia ter sido uma praia encantada é um desastre em todos os aspectos. O ministro Theias - que se confessa "um amante da baía", porque nesta praia passou 18 anos de férias - promete apoiar o projecto de reabilitação de Gonçalo Byrne apresentado pelo presidente da Câmara de Alcobaça, Gonçalo Sapinho. Será desta?
 
São Martinho/Foz do Arelho  
Voltamos então a S. Martinho? Isso quer dizer, caro JJ, que o ajuste de contas não ficou resolvido depois daquela narrativa implacável de uma noite perdida num cinema perdido?
E voltamos de que maneira! Guiados nada menos que pelo saudoso Eduardo Prado Coelho, um dos mais brilhantes espíritos do nosso tempo. Bem, EPC sabia do que falava, o pai, Jacinto do Prado Coelho, alugava casa em S. Martinho (lembro-me bem dela). Nos anos 40 e 50, S. Martinho deve ter sido uma espécie de S. Pedro de Moel, procurada por artistas e intelectuais, defendendo a qualidade e equilíbrio da ocupação urbana, tirando partido de uma excepcional vantagem paisagística.
Todas a costa Oeste sofreu desde os finais da Idade Média um processo inexorável de assoreamento e a baía de S. Martinho não fugiu à regra. O mar foi recuando desde Alfeizerão (porto ligado à construção naval ainda no século XV e XVI) até à pequena concha que hoje conhecemos. A actividade piscatória foi enfraquecendo e a projecção económica dos três portos (além dos dois já mencionados, Salir) diminuindo. De qualquer modo, lembro-me de ver a baía com barcos de pesca ancorados e assistir à descarga de peixe no cais de S. Martinho. Quando o mau tempo assolava a Nazaré, os barcos aqui registados procuravam refúgio em S. Martinho.
A perda de importância portuária da zona encontrou alternativa no turismo. Para isso muito contribuíu a linha de caminho de ferro do Oeste, inaugurada em 1887. A linha do Oeste, prolongando a linha de Lisboa a Torres Vedras até Alfarelos (onde encontrava a linha do Norte), servia as termas das Caldas e a praia de S. Martinho. Nas duas décadas finais do século XIX e primeira metade do século XX, S. Martinho integrou a oferta turística caldense, que dispunha no mesmo “pacote” de termas e praia amena, distantes entre si uma dezena de minutos de combóio. Os médicos das termas receitavam banhos no Hospital aos avós queixosos de reumático e aconselhavam banhos de mar aos netos esquálidos. Quando se criaram, na década de 20, os primeiros estabelecimentos de saúde pública na região, as consultas de saúde infantil orientavam as crianças para S. Martinho. A “descoberta” da Foz por parte dos caldenses e das classes médias caldenses foi mais tardia. Desse ponto de vista, a descrição que aqui foi feita de um acampamento junto à Lagoa, é elucidativa. Em meados dos anos 60, as classes médias caldenses, se queriam ir para a Foz, tinham de se instalar num improvisado Parque de Campismo, desprovido de equipamentos.
De facto, penso que foi só a partir dessa altura que a Foz do Arelho adquiriu um favor crescente entre os caldenses, destronando a preferência anterior por S. Martinho. Foi desde essa altura que deixou de se ouvir falar com tanta insistência na pretensão de anexar as freguesias de Alfeizerão a S. Martinho ao concelho das Caldas, um projecto acalentado de ambos os lados, desde pelo menos 1895.
A transição de S. Martinho para a Foz (no meu caso, fui para S. Martinho durante a instrução primária, aliás a conselho médico, e para a Foz quando entrei no ERO) não foi, no entanto nem linear, nem absoluta. Mesmo os mais apaixonados pelo ambiente, diríamos hoje “radical”, da Foz, não deixavam de manter alguma atenção sobre o que se passava em S. Martinho. Geração da modernidade como queríamos, partilhando com os jovens de outros mundos gostos e costumes, sabíamos que os ares cosmopolitas corriam mais ágeis e frescos em S. Martinho. Pois! Quem não se recorda da força atractiva que nos puxava para S. Martinho? Davam pela designação genérica (e mítica) de “belgas”...
 
As lições do meu Tio  

O meu Tio anunciava-se em finais de Agosto. Talvez se lhe tivesse esgotado o orçamento pessoal de férias quando rumava às casas das irmãs casadas, uma na Amora (Seixal), outra no Carvalhal Benfeito (Caldas da Rainha). Trazia sempre uma pequena agenda de contactos e um programa de actividades que me era destinado. Os contactos deviam ter origem em Lisboa e incluíam algumas teenagers caldenses ou que passavam o Verão nas Caldas. Perscrutava minuciosamente as deslocações do meu Pai à cidade, negociava com ele horários e, dessa forma, despachava a sua agenda. O resto do programa era ocupado com a minha educação. O meu Tio sempre levava esse tema muito a sério. Passava em revista e aconselhava leituras, falava de assuntos “sérios” e narrava histórias de pessoas e sítios distantes, comentava atitudes, corrigia a linguagem, induzia comportamentos e pontos de vista sobre o mundo. Sempre chegava com uma novidade em que considerava fundamental iniciar-me. Naquele ano foi o twist.
Depois do jantar, arredou a mesa, ordenou-me que me descalçasse, como ele, e em palmilhas de meias executasse os passos da nova dança. Não havia música, evidentemente (a casa dos meus Pais a electricidade só chegaria um ou dois anos mais tarde), pelo que o exercício era para mim particularmente difícil. De facto, o trautear do “Let’s twist again” pelo meu Tio não tinha suficiente sonoridade para vencer o meu atávico pé de chumbo para a dança. O sucesso da minha aprendizagem foi por isso muito limitado e o meu Tio prometeu voltar, no dia seguinte, aos ensaios. Mas a dúvida instalara-se no professor e no aluno. Estariam ambos condenados ao fracasso?
Três noites volvidas, era já evidente que eu atingira o nível máximo a que podia aspirar – certamente um modesto 5 numa escala de 0 a 20 – e o meu Tio inquiriu-me sobre o que é que eu queria realmente aprender. Não demorei a responder: o que eu queria mesmo mesmo saber fazer bem era nadar.
Precisamos de mais espaço, advertiu. Encostamos a mesa a uma das paredes, ficando o centro da sala liberto. De calções, ordenou o meu Tio, e deu o exemplo. Braços ao alto. Agora, flectir os joelhos, e ao mesmo tempo baixar os braços e fazer um movimento circular à altura do nariz. 1 e 2 e 3. Cinquenta vezes! Agora deitar no chão. Os mesmos movimentos, tronco para cima, braços esticados, abrir à altura do nariz, movimento circular. Ao mesmo tempo: encolher as pernas e esticar. Sincronizar os movimentos: 1 e 2 e 3. Cinquenta vezes! Amanhã de manhã vamos à Foz. Primeiro ensaiamos na areia estes movimentos. Depois na Lagoa. Não ficarás a dançar twist, mas vais ficar a nadar como os alunos do Naval, sentenciou o meu Tio, nascido e criado em Setúbal. A minha mãe olhava, desolada, o estado em que a aula deixara o tapete da sala.
Fiquei na dúvida: o meu Tio estava a transformar a aprendizagem de natação numa desforra pelo meu desinteresse pelo twist?

 
João Vieira Pereira, médido e jornalista  

Menos conhecida é a faceta de jornalista deste médico nascido há 100 anos. Foi director do jornal O Progresso , um semanário que se publicou aos Domingos, entre 18 de Agosto de 1946 e 3 de Agosto de 1947. Como se pode ver na imagem da primeira página do primeiro número, a equipa de colaboradores do jornal incluía ainda Acácio de Sotto-Mayor, Felix da Cruz, Maia de Faria, António Moreira da Câmara, Dario Preto Ramos, Eurico Bonifácio da Silva (o meu pai), Marques da Silva, J. Vieira Lino, Justino Moreira, Leonel Sotto-Mayor e Victor Coelho.

 

No seu primeiro editorial, João Vieira Pereira indica os propósitos do periódico: reagir contra a decadência que se encontra a posição das Caldas e região e contribuir para a elevação do nível cultural da população. "Não se vá pensar" - escrevia - "que o nosso papel crítico vai incidir num derrotismo por sistema, e sabemos bem que compete também à crítica louvar e aplaudir. O que pretendemos e o que ambicionamos. o título do nosso jornal o diz na simplicidade de uma só palavra" [Progresso].
O Progresso pretendia preencher uma lacuna, pois nas Caldas sempre existira, desde 1884, um jornal que dava corpo às aspirações locais. Nas suas edições, o novo semanário apresente um formato padrão: 8 páginas, 3 das quais preenchidas com notícias de Óbidos, Bombarral e Peniche, 1 ou 2 de publicidade e as restantes de noticiário caldense e textos de opinião assinados. Alguns desses textos são assinados exactamente pelo director.
Vejamos algumas das preocupações enunciadas pelo Dr. Vieira Pereira nos seus editoriais. Uma delas prende-se com a pobreza de inúmeras famílias que vivem na área urbana e que não terão possibilidades de conservar os seus casebres quando for aprovado - o que se espera para breve - o plano de urbanização encomendado pela Câmara. Para fazer face a essa situação, o director de O Progresso propõe a construção de um bairro social (o que, como se sabe, veio a acontecer).
Nos seus escritos, defende também o lançamento de campanhas contra certos males sociais, como o alcoolismo, ou pela divulgação de conhecimentos de puericultura junto das mães, ou a favor do uso generalizado do calçado e advoga o combate sem tréguas à ilegitimidade de filhos. Mostra-se ainda um defensor convicto da prática desportiva como instrumento de uma vida saudável, valorizando a educação física na escolas.
Na vida do semanário e na do seu director, um acontecimento mereceu um grande relevo: a inauguração da clínica do Montepio, um novo e moderno edifício na Rua Heróis da Grande Guerra, no dia 2 de Março de 1947. O jornal relata-o na sua edição de Domingo seguinte (9 de Março). João Vieira Pereira deixou nesse dia a direcção clínica do Montepio, sendo substituído pelo Dr. Ernesto Moreira.
Usou nesse dia da palavra para contar a história da transformação de uma salão de festas numa casa de saúde e agradecer a todos os que se tinham empenhado nessa transformação. Como esse discurso é também um documento histórico, aqui o transcrevo parcialmente:
"Como nasceu esta obra?
Não ainda há muitos anos, o Montepio abria as suas portas à hora da consulta dos sócios e recebia à noite os "habitués" do bufete e do bilhar. A parte recreativa desempenhava ainda uma função.
Depois começou o Montepio a facultar as suas salas para consultas de especialidades, e o movimento dos doentes justificava já então a porta aberta durante várias horas!
C
om o serviço de Raios X e cirurgia em 1942, o crescente movimento dos doentes transformou o Montepio num centro clínico que começou a experimentar as defici~encias de instalação e daí a ideia de uma obra capaz, for a das improvisações e adpatações, pois o Montepio passou a ser casa de portas sempre abertas.
Como foi isso possível?
Até milagre parece! Mas possível foi. Sei que o Montepoio é pobre e que supriu os fundos necessários à custa de uma força de que só é capaz a vontade nascida de uma fé forte, alimentada por uma esperança que o optimismo e o entusiasmo nunca deixam esmorecer, e justificada por um sentimento em que o desinteresse, o espírito de sacrifício e a dedicação bem sentida sintetizam a força animadora desta realização".

O Dr. Vieira Pereira considerava que as Caldas bem se podiam orgulhar dessa nova instituição de saúde e assistência, de que foi seguramente um dos pais fundadores. Colaborou na sua concepção e planeamento, no equipamento das instalações e provavelmente no seu financiamento, conhecida a sua generosidade e o seu proverbial desprendimento.

O Lisbonense na década de 10 do século XX  
A propriedade "Grande Hotel Lisbonense" era assim caracterizada na década de 10:
Edifício principal:
Cave - 25 divisões
Rés-do-chão - um salão, uma grande casa de jantar, 9 quartos, casa de entrada, casa do porteiro, 2 casas de banho, uma retrete, uma saleta, escritório, copa e casa de jantar (pequena)
1º andar - 30 quartos, uma casa de banho e 2 retretes
2º andar - 31 quartos e 2 retretes
3º andar - 31 quartos e 2 retretes
Anexo
Rés-do-chão - 14 divisões
1º andar - 21 divisões e 2 retretes
Sótão - 10 divisões e 2 retretes
Seguimento do anexo
Garagem
Cavalariças
Grande barracão para arrecadações
Celeiro
Com 2 divisões, telheiro e eira
Vacaria
Casa ampla para 4 vacas
Azenha
Casa da azenha, rés--do-chão e 1º andar com 4 divisões cada, e anexo um telheiro e 3 divisões
Capoeiras e pombal
5 divisões e pátioresguardado a rede
Fossa
Para lavagens de limpezas de automóveis
Casa de motor - uma divisão
 

Total de divisões - 220
Superfície (terrenos e edificacões) - 47 000 metros quadrados aproximadamente

 

Documento do espólio do Dr. Martins Pereira, médico do Hospital Termal, proprietário da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, que adquiriu em 1908.
É possível que o Dr. Martins Pereira tenha solicitado uma avaliação do prédio Lisbonense com vista a uma aquisição.

 
Verão de 1969. João Jales  
E o Verão é mesmo muito curto! Os dias na Foz eram passados em intermináveis conversas sobre a chegada da Apollo 10 à Lua (tinha sido em Julho, incredulamente encarada por alguns) mas também sobre os últimos discos dos Beatles ("Get Back", "Ballad Of John And Yoko"),especulações sobre se o lançamento do single "Give Peace A Chance" por John Lennon no princípio de Julho prenunciava o fim dos Fab Four (prenunciava mesmo). "Mais populares que Jesus Cristo" os Beatles eram um assunto importante, nunca antes ou depois um grupo musical teve tal influência na forma de viver, pensar, vestir e agir da juventude. Eu esperava ansiosamente a saída do LP "Abbey Road", anunciada para Setembro.
Tenho uma ideia de tentar perceber, das conversas dos mais velhos, o que significavam as demissões de De Gaulle em França e Dubcek na Checoslováquia, amplamente relatadas na imprensa nacional, sempre empenhada em mostrar a "agitação" que se vivia no estrangeiro por contraste com a "paz e ordem" nacionais. A RTP tinha dedicado um "Títulos de Caixa Alta" precisamente à Checoslováquia, onde pela primeira vez ouvi o "Hino a Jan Pallach", uma canção da ultra-direita portuguesa (normalmente pouco dada às artes musicais...). Tudo isto era tema de conversa no círculo dos meus pais, mas eu era novo de mais para compreender o que se passava.
Soube, com espanto, que a minha Mãe tinha simpatias monárquicas quando a ouvi, nesse Verão, aplaudir a nomeação, por Franco, de Juan Carlos para seu sucessor. Para mim, isso dos reis era coisa do passado. Para o meu Pai também, pelo que fiquei a conhecer "ao vivo e em estereo" os diversos argumentos da polémica monarquia/república.
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Noite extraordinária (12 de Agosto de 1957) 12 de Agosto
Foi arrancado ao sono por um chamado insistente. Tinha o sono pesado, próprio de um rapazito de 8 anos, e certamente levara algum tempo até despertar por completo. Agora estava sentado na cama, um pouco inquieto, quando ouviu de novo a voz que lhe pareceu da mãe. O chamado era entrecortado, como se ela respirasse com dificuldade. Abriu a porta e entrou no corredor. Viu luz no quarto dos Pais e disse: estou aqui, Mãe. A porta estava encostada mas ele não chegou a empurrá-la porque a Mãe lhe ordenou: não entres aqui, vai depressa chamar a tua Avó.
Nem um momento duvidou de que a situação era grave. Qualquer coisa naquela ordem da Mãe lhe dizia que não havia tempo a perder. Mas o problema aí estava: como ir sozinho de noite a casa dos Avós? A distância não era grande, percorrida de dia, mas àquela hora parecia-lhe impossível de vencer.
Calçou os chinelos e foi até à cozinha. Abriu a porta da rua e perscrutou a noite. Depois de jantar dera uma volta com os Pais no caminho em frente da casa. Estava uma noite quente, era Agosto, de luar cheio e luminoso. Mas, entretanto, a lua tinha-se deixado ocultar e tudo lhe pareceu impenetravelmente escuro. Desceu as escadas e tomou o caminho até às adegas e abegoarias. Ia devagar, para não sair do centro do caminho e dar tempo a que os olhos se habituassem à escuridão. Ia atento aos mínimos ruídos. Entre as abegoarias, havia um serra da estrela, preso, cuja corrente corria ao longo do pátio. Chamou-o: Tejo, sou eu, bom cão, sou eu, com medo que o animal o não reconhecesse. O Tejo surgiu de repente e deu-lhe um encontrão amigável, mas ele estremeceu de susto, antes de respirar de alívio. Havia, a seguir, uns galinheiros semi-abandonados que lhe pareceram particularmente ameaçadores. Vinha depois uma ponte, que atravessou ansioso sabendo que, ultrapassado aquele ultimo obstáculo, poderia embalar a correr na descida só parando em casa dos avós. Quando chegou aqui estava ofegante, mas recuperara a confiança. Tinha ainda de vencer um último obstáculo: ser ouvido por alguém da casa. Bateu à porta e chamou. Bateu também nos vidros e chamou.
Foi o avô, de sono mais leve, que o ouviu. Veio pela marquise, com um candeeiro a petróleo na mão, tentando ver através dos vidros quem é que estaria a chamar àquela hora. Éich tu, rapache? Diche lá o que se passa (o avô era beirão e não perdera o sotaque apesar das várias dezenas de anos de aculturação estremenha). É a minha mãe, disse o rapazito. Pediu para chamar a Avó.
A Tia, solteira ainda, levantara-se também e vestira um roupão para vir à marquise. Vieste sozinho? perguntou. Rapaz corajoso, deves estar cansado. Vou-te fazer um chá de tília. Em casa daqueles avós bebia-se chá de tília a seguir às refeições e em todos os momentos em que era justificado disponibilizar algum conforto. Enquanto esperava o chá, o miúdo viu a Avó, já vestida, reunindo panos, um alguidar, diversos utensílios, antes de sair para a noite na companhia do Avô.
Agora vens comigo, ordenou a Tia. Ele sentiu-se, finalmente em sossego, naquela cama relativamente estreita com a Tia ao lado, velando pelo seu sono. Adormeceu.
Foi despertado pela vozearia no corredor. Já devia ir alta a manhã. A Avó estava de regresso e sorria para ele da porta do quarto. A minha mãe? perguntou. Está bem, respondeu. E já lá tens uma irmazita.
 
Imagens comentadas. 5 - A Rainha (1935)  

As colchas nas janelas, o povo apinhado no largo com as crianças à frente, as pessoas que subiram à zona das mansardas em busca de um melhor ponto de observação são os elementos que dão a perceber, sem qualquer dúvida, que é de uma festa que se trata. Festa cívica, pois assim se homenageava a Rainha Fundadora. Estávamos em 15 de Setembro de 1935.
O Presidente veio às Caldas associar-se ao acto. Foi recebido no hotel Lisbonense, em frente do qual passou revista a uma formação de militares do Regimento de Infantaria 5. A Emissora Nacional enviou o seu principal repórter, Fernando Peça, para a cobertura do acontecimento. O Diário de Notícias mandou um dos seus valores do jornalismo, Luis Teixeira.
O preto e branco da fotografia talvez nos induza em erro. De facto não sabemos se era exactamente preto o pano que cobria a estátua no momento em que Montês discursava. Supomos que teve de colocar a voz para se fazer ouvir, pois não contou com nenhum sistema de amplificação. Certamente que o fez com alguma emoção, pois a iniciativa de fazer erguer num espaço público da cidade uma estátua a D. Leonor fora sua, bem como sua fora também a ideia de colocar o monumento à subscrição pública.
Sabemos que a escolha do local suscitara dúvidas e oposições e que um atraso na fundição do bronze quase comprometia a cerimónia inaugural. Da facto, por baixo daquele manto aparentemente negro escondia-se o branco molde de gesso onde Francisco Franco concebera a sua Rainha. De negro parece também vestido António Montês. É por isso que as páginas onde anotou cuidadosamente as palavras que queria proferir surgem tão vincadamente brancas.

 
Lisbonense  
 
Imagens comentadas. 4 - Na confluência das Avenidas  

Por definição, a fotografia mostra um fragmento do real. Empunhada lá de cima, quase na vertical, a câmara registou a primeira surpresa da fotógrafa: a pequena mancha vermelha do automóvel sobressaindo de uma tela azul saturada de riscos e em contraste com um chapéu de chuva "pintado" de branco.
Recuemos agora, descobrindo a história que a imagem não conta. Duas horas antes, aí pelo meio dia, a chuva transformara-se subitamente em fiapos brancos. A cidade, arrancada ao torpor de um Domingo de Inverno, não sabia como reagir. Durante uma hora, a neve amontoou-se nos passeios, cobriu os telhados e os carros. Estava-se a 29 de Janeiro de 2006.
Deixado só na confluência das avenidas, o carro mostra ainda os vestígios do manto que o regresso da chuva vai apagando. Quando partir, procurando aderência no alcatrão escorregadio, deixará para trás mais um sulco efémero naquele pavimento que parece saido de uma pintura abstracta.
A surpresa das meninas e da fotógrafa desvanecer-se-á então lentamente. Começarão a falar alto, rindo e interrompendo-se, numa excitação ininterrupta, depois do espanto e da concentração silenciosa, como se quisessem fixar para sempre uma experiência que sabiam improvável. Lá em baixo, na confluencia das avenidas, os rastos de um daqueles absurdos urbanísticos que a cidade patrocinou, também se irão pouco a pouco esbatendo.

 

Margarida Araújo, Red.
Caldas da Rainha, 29 de Janeiro de 2006

Memórias dos anos 60 - Do outro lado do espelho  

Agora que se anuncia o termo deste Diário [vide Diário de 9 de Junho publicado em http://externatoramalhoortigao.blogspot.com/] que o JJ em boa hora encontrou "num sótão muito húmido", tomo coragem e peço licença para comentar. A leitura deste dia 9 foi para mim absolutamente surpreendente. Voltei atrás, ao meu 6º ano de ERO. Imaginei-me como a personagem descoberta por JJ, um diarista. Procurei reconstituir a situação e confesso a enorme perturbação em que me achei.
Caro JJ, caros companheiros: eu estou naquelas páginas amarelecidas e de tinta esborratada - exactamente numa das que escapou, quase por milagre, para que alguém a transcrevesse e no-la desse a ler. Não repararam? Compreendo. Eu também levei algum tempo a perceber. É que eu estou no outro lado da história.
Como o diarista de 1966-1970 nunca se identifica, vamos atribuir-lhe o nome fictício de J. Vejamos. J. antecipa os seus 4 meses de férias. Desvenda-nos que um mês será passado entre porcos, galinhas, vacas, um rio e uma floresta. Ou seja, um quarto das suas ambicionadas férias será ocupado a caçar e pescar, a divertir-se com os primos um pouco mais velhos, nesse paraíso de uma aldeia, onde nada acontece.
Não nos esclarece J. de onde vieram esses primos. De outras cidades?Provavelmente.
Este diário é um espelho. Na imagem invertida está alguém que vive nessa aldeia onde não acontece nada, que todos os dias e todos os meses se recolhe onde há porcos, galinhas, vacas, um rio e uma floresta. Alguém que todos os dias, durante o período de aulas, percorre duas vezes a distância que o separa da cidade, do colégio onde estuda. Que antecipará ele no dia 9 de Junho sobre os 3 longos meses de férias que se avizinham? Que entusiasmo será o seu perante o fecho das aulas? Deixará de se encontrar diariamente com os colegas e amigos, de saber coisas sobre as suas vidas, suspenderá laços afectivos e processos de conhecimento, interromperá camaradagens e amores. Pode ler, mas com quem trocará impressões sobre o que leu? Pode escrever cartas mas que destinatários estarão disponíveis para lhes responder?
J. esqueceu-se de referir, mas eu estou em condições de esclarecer. Um daqueles primos um pouco mais velhos era eu. Não vim da cidade nas férias, estava lá, vivia lá. O melhor das minhas férias eram esses primos que vinham e iam.

[Originalmente publicado em http://externatoramalhoortigao.blogspot.com/]

 
Memórias dos anos 60 - I: O "Sinaleiro" (uma noite de Setembro de 1966)  

- Tens onde ficar? perguntou-me o Zé Tó, já devíamos estar perto das 2 da manhã. O "Inferno" acalmara. No piso inferior, havia três grupos na cavaqueira. O dos professores primários, um grupo de amigos e familiares dos donos da casa e o dos estudantes universitários. Eu deambulara entre eles. Tinha vindo com o capitão Aventino Teixeira, que encontrara na Zaira ao fim da tarde e com quem combinara ir à noite à Azenha. Tema da conversa: a Faculdade de Direito de Lisboa, onde ambos acabáramos de entrar. Como aluno voluntário, o Aventino queria saber se eu já tomara contacto com os programas e adquirira sebentas e códigos. Estávamos em Setembro. Dentro de pouco tempo a minha vida sofreria uma grande mudança.
O Aventino tinha relações familiares com o Luis Barreto, o proprietário daquele espaço, uma velha azenha do século XVIII, desactivada em 1945 e recuperada em 1964, funcionando desde o ano seguinte como clube particular aberto a "amigos e amigos dos amigos".
No grupo dos professores todos me eram familiares, a começar pela Branquinha, que residia em casa dos meus Pais, no Carvalhal Benfeito, a Melita e o Tó. Com eles estava também Alice Pimentel, Joca Sales, e o irmão deste, Zé Maria, pintor e escultor. O Ferreira da Silva dançava sozinho no espaço central, em terra batida. Era uma figura impressionante, com a boina preta por baixo da qual despontavam madeixas rebeldes, e uma camisa de quadrados com as mangas enroladas. A certa altura parou e desafiou Alice para cantar, mas não havia ninguém com guitarra. No outro grupo estavam antigos alunos do Externato Ramalho Ortigão, que tinham feito o 7º ano em anos anteriores e estavam em Coimbra ou Lisboa, na Universidade. O Zé Tó estava com eles.
- Desta vez fico nas Caldas - respondi. Vais sair agora? Tens lugar para mim no carro? [...]

[Originalmente publicado em http://externatoramalhoortigao.blogspot.com/]

O "Sinaleiro"
 
Os Lusíadas do Século XX  

Escolhi um livro para corresponder ao repto da Isabel Castanheira, após muita hesitação. Para ser sincero, não consigo encontrar um livro que se possa impor a todos os outros, que tenha tido um lugar cativo nas minhas preferências ao longo da vida. Como esta já vai quase em seis décadas e os livros sempre fizeram parte dela, ou como pura fonte de prazer ou como instrumento de trabalho profissional, compreende-se que a escolha seja quase impossível. Recordo muitos livros que ganharam um estatuto especial, pelos mais diversos motivos. As séries de romances dos "Cinco" ou de "Emílio Salgari", por exemplo, dominaram as minhas leituras de adolescente. Mas na juventude descobri a grande literatura e deixei-me seduzir pelos romances de Eça, Tolstoi, Scott Ftzgerald, William Faulkner e Sommerset Maugham. Hoje, porém, tirando o primeiro nome desta série, não releio os livros destes autores. Já o mesmo não se passa com os poetas, a cujos livros - ou mesmo só a um poema - regresso em certos momentos, correspondendo a um apelo inexplicável. Neste caso, estão poetas que me acompanham desde sempre, como Pessoa, Eugénio de Andrade e Herberto Helder, outros que entraram mais recentemente, como Fernando Pinto do Amaral, outros ainda que alternam com longas ausências como José Gomes Ferreira, Alexandre O'Neill ou Pablo Neruda.

 

Olhando para as estantes onde acumulei os resultados de aquisições, quase obssessivas, poderia apontar livros a que atribuo um valor singular, sentimental ou científico: na área da cerâmica como na da história contemporânea, na área dos estudos locais como no dos estudos urbanos, na área da fotografia como no dos livros de memórias.
Escolhi um de uma área mais difícil de identificar, o Guia de Portugal , dirigido por Raul Proença e que se começou a publicar em 1924. Nessa época o turismo (o termo tinha sido aportuguesado recentemente, nos finais do século XIX ainda se usava o vocábulo francês, tourisme ) dava os seus primeiros passos como actividade organizada. Alguns concelhos, como o das Caldas, que atraiam movimentos sazonais de visitantes, em razão dos seus monumentos, das suas paisagens, das suas termas, dispunham de guias. Editados nos primeiros anos do século, esses guias continham indicações sobre os locais a visitar, informações sobre como chegar, distâncias, alojamento, restauração, etc. Conheço brochuras destas relativas a Alcobaça, Coimbra, Sintra, Braga, Lisboa, Porto, Évora, Leiria, Viseu, por exemplo. Não conheço, porém, nenhum guia, anterior a 1924, que reuna este tipo de informação sistematicamente e para todo o país. O Guia de Portuga l foi pioneiro, neste aspecto.
Sucede, no entanto, que o projecto de Raul Proença era mais ambicioso. Ele reuniu á sua volta os melhores escritores da sua época, os melhores especialitas em história de arte, em geografia física e humana, em arqueologia, em antropologia. O primeiro volume do Guia (Lisboa e Arredores) tem 700 páginas e contou com 25 colaboradores. Entre eles estão escritores como Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoais, Afonso Lopes Vieira, Raúl Brandão, Júlio Dantas, ensaistas como António Sérgio, Jaime Cortesão, Câmara Reis, Azevedo Gomes, historiadores de arte como Matos Sequeira, José de Figueiredo, Reinaldo dos Santos, investigadores de geografia e antropologia, como Silva Teles, Oliveira Ramos e Alves Pereira. O responsável gráfico da obra é Raul Lino, um dos arquitectos mais celebrados na época.
O Guia de Portugal foi concebido como um repositório exigente e actualizado do conhecimento sobre a paisagem geográfica e cultural portuguesa. Mais do que um roteiro de estradas e localidades, pretendeu ser uma obra sobre o Portugal que os portugueses tinham produzido. Num certo sentido, o paradigma de Proença foi Os Lusíadas de Luis de Camões. Proença queria os melhores do seu tempo a descrever e interpretar Portugal. Mas o Guia não é uma justaposição de textos, porque o coordenador os reelaborou de forma a garantir a unidade de critério e a coesão formal do projecto.
A quantidade de informação recolhida nos 8 volumes de que se compõe o Guia é impressionante. Proença e os seus colaboradores percorreram o país, elaborando milhares e milhares de fichas sobre localidades, monumentos e itinerários. É uma obra única no seu género e que permanece ainda hoje como obra ímpar da nossa cultura.
Admiravelmente bem escrita, mesmo quando o seu conteúdo é mais árido, pode dizer-se hoje que o Guia é um livro de viagens. E que fascinante é hoje visitar locais descritos por visitantes ilustres, munidos dos livros onde eles testemunham o modo como os perceberam!
Quando as minhas raparigas eram adolescentes costumavamos fazer viagens confrontados com o Guia de Portugal. Eu elaborava uns verbetes sobre os pontos do roteiro com a descrição extraida do Guia, mas sem o nome respectivo, e elas tinham que adivinhar o que é que correspondia a quê. Ainda hoje recordamos essas espécies de "rally paper" com a história de permeio.
Proença dedicou este seu extraordinário trabalho a viajantes especiais que ele quis se sentissem especiais. Foi o que nos aconteceu e é o que acontece a todos os que continuam a viajar com o Guia de Portugal .
Essa dedicatória reza o seguinte: "A todos os que não desejam fazer perpetuamente justa a frase de Montesquieu, ao dizer dos portugueses que tinham descoberto o mundo, mas desconhecem a terra em que nasceram; este livo, inventário das riquezas artísticas que ainda se não sumiram na voragem, e das maravilhas naturais que ainda não conseguimos destruir, antologia de paisagistas, "vade-mecum" de beleza, roteiro dos passos dos portugueses enamorados, indículo das pequenas e grandes coisas, que requerem o nosso amor - pelo passado, pelo presente e pelo futuro -, é oferecido e dedicado" .

 
Imagens comentadas. 3 - O rossio caldense às 10h30.  

Uma centena de anos, praticamente, nos separam deste rossio caldense que um autor anónimo registou (Júlio Paramos?). Uma distância imensa!
Observamos, é certo, os elementos que permaneceram. Os edifícios do lado norte, à excepção (bem notória) de um, o tabuleiro central, o marco do correio. Mas inevitavelmente o que sobressai é o somatório das diferenças, e tantas são.
Manhã de movimento escasso, as vendedeiras de frutas e bolos concentram-se do lado norte, junto às árvores ou abrigadas sob chapéus de sol de lona branca. Um bando de perus procura, nos interstícios do empedrado alvinegro, algum alimento perdido. Mais adiante, um varredor municipal junta os detritos criados pela passagem de animais e produtos.
Na Câmara Municipal, as três primeiras janelas de sacada foram abertas para deixar entrar o ar da manhã. De uma das janelas do rés-do-chao, sai uma vara, com uma lata na ponta e talvez uma inscrição, solicitando uma moeda para os homens ali detidos. À entrada da Rua do Jogo da Bola, um cartaz anuncia espectáculos (uma tourada?). Desse lado da praça, lojas abriram os seus toldos, protegendo-se do sol.
A unidade deste magnífico espaço público urbano foi surpreendida pelo fotógrafo. A linha do horizonte é debruada de arvoredo.

 

[Bilhete Postal Ilustrado, "Praça D. Maria Pia", 1903. Colecção de J. Saloio]

No verso do postal, editado por Paulo Guedes & Saraiva, Rua do Ouro, 80, Lisboa, está escrito. Para "Jerónimo Silva/ Hotel da Belavista/ Termas de Caldelas.19 -8-06. Parabéns e um abraço pelos teus anos a 21. Recebi postal que agradeço. Amanhã parto para a digressão. Escreverei. Um abraço. Leitão". Laconicamente.

 

Rendas de Peniche na Exposição Universal de Paris 1889  

As rendas de bilros de Peniche foram levadas ao Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris de 1889. E foram distinguidas com medalhas.
Medalha de ouro foi atribuída à Escola Industrial de Peniche (rendas brancas e de cores, almofadas, leços e cobertiras de malha bordadas). O Museu Industrial e Lisboa, que recebeu uma medalha de prata, também apresentou amostras de rendas de Peniche. O mesmo se passou com o Museu Industrial do Porto e com Joaquim de Vasconcelos (que apresentou amostras de rendas e entremeios de Peniche, Vila do Conde e Viana do Castelo).

Fonte: A. E. F. de Cavaleiro e Sousa,
Uma Visita à Exposição Universal de Paris
em 1889
. Lisboa, 1892 (p. 301-302)

 

 
Imagens comentadas. 2 - Abril no Quartel das Caldas (1974)  

Quarenta dias antes (a 16 de Março), o País fora acordado com a notícia de uma sublevação no quartel das Caldas. A cidade, passadas as primeiras horas de surpresa e alguma ansiedade, começou a olhar para aquele quartel onde se administrava a recruta a futuros sargentos com uma curiosidade diferente. Interpretando os sinais que dantes tinha negligenciado (sinais de desafectação em relação ao regime, de cansaço de sucessivas mobilizações para a guerra de África, de solidariedade para com os chefes afastados - Spínola, Costa Gomes), espreitando os movimentos de oficiais (os que saíam repentinamente, os que chegavam de novo).
Consumada a queda da Ditadura, os militantes caldenses da Oposição marcharam sobre o quartel. Queriam saudar os vitoriosos do 25 de Abril e os derrotados do 16 de Março. Empunhavam cartazes improvisados: "Abaixo o Fascismo", "Viva as Forças Armadas, Viva a Democracia, Viva a Liberdade", "Abaixo a Ditadura", "Estamos com as Forças Armadas". O João Morais, desencantara uma enorme bandeira nacional com a qual, do alto dos seus dois metros, conclamou o povo na Praça da República, para a tomada pacífica do antigo Regimento de Infantaria 5.
Pareciam uma família, civis e militares, caldenses de percursos diferentes, irmanados na mesma esperança e na mesma gratidão. No mesmo entusiasmo, na percepção comum de que estavam a viver um momento único, porventura mágico, nas suas vidas. Também a Oposição se irmanava. Literalmente. Os irmãos Maldonado Freitas - António e Custódio - em nome da Resistência, agradeceram aos militares o acto libertador e exortaram o povo à unidade.

 
Carlos Gil, Manifestação no RI5 (1 de Maio de 1974).
Colecção particular
Peniche, 1860 - Carta de D. Pedro V ao Marquês de Loulé  

O monarca acaba de fazer uma visita a Torres Vedras e Peniche. Dá conta de alguma observações que fez ao Marquês de Loulé, que chefia o Governo. No caso de Peniche, a carta contem preciosas informações: sobre os conflitos entre o Governador da Praça e o comando de Engenharia, sobre a necessidade de reparar a muralha e de fazer do fosso um porto de refúgio dos barcos de pesca.
Data da missiva do Rei: 3 de Setembro de 1860.

Francisco Fortunato Queirós, D. Pedro V eo seu Pensamento Político. Vol II - Cartas para Marquês de Loulé. Porto 1974. p. 164-166.

 
Imagens comentadas. 1 - Mariscadoras da Lagoa de Óbidos  

Em frente, a margem do Bom Sucesso, quando a arborização ainda dominava a natureza cujo equilíbrio o homem não ousara romper.
A grande toalha líquida herdada de um passado quase sem história serenara. Um fim de tarde, quando o vento pára e a Lagoa parece querer espelhar o céu sem nuvens? É a altura que as tainhas escolhem para, nos seus voos incertos, mostrarem que afinal a Lagoa continua viva, apesar do seu momentâneo descanso.
O conjunto de canas que nascem da água não denuncia a brisa habitual. Foram ali plantadas para assinalar as artes de captura das enguias e permanecem hirtas no seu posto de vigia.
A bateira que repousa na areia um pouco lodosa acentua a ilusão de imobilismo. A âncora esquecida e o cabo lasso, é o fim da faina que ilustram. As mulheres mariscadoras regressam ao trabalho. Indiferentes ao olhar do fotógrafo, o movimento está nelas.
Nelas estão igualmente os sinais que obriga o corpo a curvar-se horas sem fim, as mãos molhadas de água salgada, o sol, o frio, o vento e a humidade que lhes sulcaram o rosto.
Nos sacos de plástico presos à cintura vai o contributo possível para o sustento da família. Vida. Vida dura. Quanto tempo mais?

 
Joaquim António Santos Silva, Lagoa de Óbidos, sem data
(colecção particular)
Mercado, rossio, praça das Caldas da Rainha  

Na evolução histórica dos centros urbanos, os rossios começaram por ser espaços de mercado situados em terrenos baldios, relativamente periféricos [1] . A articulação do rossio com a área habitacional fazia-se através de uma rua habitualmente designada por Rua Direita (e da qual por graça se diz que é a rua mais torta da vila ou cidade). O crescimento urbano, sobretudo pós-medieval, absorveu os rossios conferindo-lhes uma centralidade de que não dispunham originalmente.
Caldas da Rainha não fugiu a este modelo. As etapas foram no entanto percorridas aqui mais depressa do que noutras paragens, devido ao facto de a vila das Caldas ser uma criação moderna (viragem do século XV para o XVI). A integração funcional do rossio acompanha os primórdios da vila e, em meados do século XVIII, quando o edifício da Câmara Municipal é construído em frente do pelourinho [2] , está concluída. O centro da vila é já a sua Praça Nova (por oposição à Praça Velha, o Largo fronteiro ao Hospital).
No século XIX, quando Caldas da Rainha se torna ela própria o centro de um vasto concelho (recebendo terras outrora pertencentes aos coutos de Alcobaça e ao concelho de Óbidos), e o polo de atracção de uma vasta região, o velho rossio pulsa como o coração desse organismo vivo. O seu tabuleiro é ampliado, com a demolição da Igreja de Nossa Senhora do Rosário [3] , regularizado através de uma calçada à portuguesa, e arborizado [4] . Recebe nome: o da Rainha D. Maria Pia. Em toda a volta, povoa-se de lojas: de produtos, sementes e alfaias agrícolas, de fanqueiros, de farmácias, barbearias, cavacarias e cafés, e, em seguida, de casas de seguros e bancos, e uma filial de grandes armazéns lisboetas. O comércio de peixe, ruidoso, e cujo cheiro convive mal com os primores agrícolas e os refinamentos da moda, é desviado para outra praça entretanto criada [5] . Do lado oposto àquele em que desemboca a Rua Direita (hoje Rua da Liberdade), a Rua do Jogo da Bola (hoje Rua Almirante Cândido dos Reis, vulgarmente conhecida por "Rua das Montras") transforma-se num dos eixos mais animados da vila, com as suas lojas modernas, de louças e tecidos [6] .
Esta centralidade do velho rossio, estruturador da vocação comercial das Caldas, opôs até hoje uma tenaz resistência a todos os projectos de lhe retirar a razão histórica de existência: o seu mercado. Não faltaram, desde 1910, promessas e tentativas para dotar a vila, mais tarde cidade, de um mercado fechado [7] . Todas esbarraram com dificuldades financeiras ou logísticas, ou pura e simplesmente com movimentos de opinião esclarecidos e fortes.
Mas a Praça das Caldas está hoje doente. E o seu futuro proclama um debate urgente e uma estratégia coerente. Os factores de crise são vários.
Têm sido autorizadas intervenções em edifícios agressivas do equilíbrio da praça. Alguns edifícios, em contrapartida arrastam uma existência não assistida, comprometendo a sua recuperação. Sem plano nem sistema de incentivos, a renovação do comércio compatível com a dinâmica do mercado de géneros tem sido lenta e hesitante. Um acontecimento recente teve consequências dramáticas: o edifício da Câmara foi abandonado - com a transferências de serviços aí, como na Rua das Montras, sediados.
Mais recentemente, as obras do Centro Cultural e de Congressos, eliminado uma zona de estacionamento que servia os utentes da praça, parece ter precipitado a decadência do mercado.
Mas há mudanças estruturais em curso que afectam a continuidade das funções tradicionais da praça. São as novas tendências do comércio, as novas regras de controlo da venda de géneros, a mudança dos circuitos de distribuição e venda, as alterações sociais da urbanidade e dos sistemas de circulação viária, os novos hábitos de consumo, as modificações da localização dos serviços públicos e dos padrões de acesso dos respectivos utentes. A esta avalanche de mudanças que se abateu sobre o velho rossio caldense nas últimas duas décadas não correspondeu nenhum movimento que contrarie a crise: nem urbanístico nem cívico, nem económico nem institucional.


[1] Orlando Ribeiro, "Cidades", in Dicionário de História de Portugal , dir. de Joel Serrão, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971.

[2] O novo edifício da Câmara fez parte de um conjunto de obras que D. João V encarregou Manuel da Maia de planear nas Caldas, em 1747. As obras foram iniciadas em 1749 (13 de Agosto) e, segundo inscrição da fachada, concluídas no ano seguinte.

[3] A remodelação do Rossio, com demolição da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (no topo fronteiro ao actual café Bocage) e do Pelourinho foi efectuada em 1834.

[4] As obras de beneficiação do tabuleiro do rossio das Caldas - arborização e calcetamento - foram concluídas em 1883, conforme inscrição nos topos. Foram custeadas por donativo particular, no valor de 2 contos, por Faustino da Gama, grande proprietário rural na região.

[5] O processo de transferência de parte do comércio da Praça Maria Pia (hoje da República) para a Praça Nova (5 de Outubro) iniciou-se em 1886. O tabuleiro desta praça teve desenho do mesmo autor do do rossio: Celestiano Rosa, um técnico de Obras Públicas, residente na Amoreira, Óbidos. Na Praça Nova começar-se-ia a edificação de um Teatro, aberto ao público em Setembro de 1900, o Teatro Pinheiro Chagas, cuja planta original pertenceu igualmente a Celestiano Rosa. Repare-se como a ocorrência de uma diversificação e transferência de espaços de mercado se reflecte na toponímia: a Nova Praça, a mais recente, remete sempre a antiga para uma situação nominal de Velha ...

[6] A Rua do Jogo da Bola situa-se no prolongamento da Avenida que a partir de 1887 ligará a vila das Caldas à estação do caminho de ferro, o meio de comunicação e transporte que revolucionou a articulação das Caldas com Lisboa e o resto do País.

[7] Um dos projectos formulados pelos dirigentes locais republicanos com particular impacte no era o de construír um novo Palácio Municipal no local conhecido por Pinheiro da Rainha, ao cimo da Rua do Chafariz das 5 Bicas (Rua Diário de Notícias). Este edifício ficaria a dominar uma larga avenida rasgada desde o Largo Conde de Fontalva (onde se encontra a estátua da Rainha), passando pelo velho rossio. Por diversas vezes, ao longo do século XX, este projecto seria retomado, felizmente porém sem lograr efectivação.

 
Arqueologia da industria alimentar  
 
Boião de Conservas de Mexilhão da Casa Grandella. Provavelmente da segunda década do século XX. Faiança (fabrico da Fábrica de Sacavém ?)  
Um carbonário caldense de 1910  

A carta que a seguir transcrevo é um documento a muitos títulos interessante, com a qual me deparei no decurso de uma investigação que estou a realizar no arquivo de José Relvas, em Alpiarça. Relvas foi nomeado Ministro das Finanças do Governo Provisório empossado a seguir à revolução republicana do 5 de Outubro de 1910. Da volumosa correspondencia que consultei relativa a esse período, esta carta enviada por Carlos Ferreira, um funcionário da estação dos caminhos de ferro das Caldas, membro da loja Maçonica "Aurora", de Tornada, e da Carbonária Portuguesa, é deveras singular pelo teor e pelo estilo.

Caldas da Rainha, 21-10-1910
C:. e resp:. ir:.
Escrevendo-vos, é não só mimha intenção saudar em vós esse feito heróico que foi a implantação da República, como também oferecer-me para concorrer com a minha quota-parte - material e moral - para o seu engrandecimento.
A parte material que ofereço é a entrega de um dia de trabalho por mês, durante um ano, para a diminuição ou extinção da dívida externa, secundando assim a ideia generosa de nossos Irs:. de Lourenço Marques.
A parte moral é o oferecimento dos meus serviços em favor da República, em qualquer cargo que o Governo Provisório me julgasse apto para exercer e de que fosse prova bastante dez anos de serviços ferroviários, oito dos quais como bilheteiro.
Para este segundo oferecimento, lembrava-me que, tendo necessariamente de ser remodelados os serviços de Fiscalização do Estado junto das Companhias de Caminho de Ferro, eu poderia, com os meus conhecimentos, mais facilmente satisfazer no serviço da República de que qualquer leigo no assunto.
Atenda porém meu c:. ir:. que não é meu desejo simplesmente ter um lugar à mesa do orçamento, porque felizmente estou empregado e tenho por cá também um bocado de esperança no futuro, mas sim concorrer com as minhas próprias forças para a consolidação da República.
Espero que do primeiro oferecimento seja tomada nota, que eu cumprirei com a sua entrega em local que para esse fim seja designado; e do segundo, se não forem aceites os meus serviços, porque a República tenha pessoal adido que deva chamar ao serviço, ou outros cidadãos a quem os seus serviços para a sua implantação devam de alguma forma serem contemplados, não será pela sua recusa que a minha fé terá esmorecimento, antes pelo contrário, trabalharei com mais ardor do que até aqui no muito que ainda há a fazerSaúde e fraternidade
Sincero e leal admirador do meu C:. ir:.
Carlos Ferreira
Bilheteiro na estação das Caldas da Rainha
Ir:. Solrak - 1º Vig:. da Resp:. Loja Aurora ao V:. de Tornada - Gr:. 9º - e membro da Carbonária Portuguesa.

 
Lagoa de Óbidos, 1898  

A procura iconográfica, que realizei em Vila Viçosa para um trabalho em curso sobre Hintze Ribeiro, desvenda-me um album de fotografias do Rei D. Carlos, datada de 1898, sobre um passeio na Lagoa de Óbidos.

 
Camponesa dos arredores das Caldas da Rainha (1814)  

Legenda (tradução):
"O vestuário desta camponesa assemelha-se muito ao das aldeãs dos arredores de Lisboa. Tal como estas últimas, calça botas de couro e tem a cabeça envolta num lenço branco atado por debaixo do queixo; mas em vez do chapéu ponteagudo das Saloias, traz um chapéu redondo de abas largas, que a protege melhor do sol. No fundo da estampa pode ver-se um carro de bois da região, carregado com uma grande tina cheia de cachos de uvas que são transportadas para o lagar".

L'Évêque, Portuguese Costumes . Londres, 1814.
Edição facsimilada, Inapa, 1993

 

 
Camponesa de José Malhoa (1903)  

Malhoa encontrou na família Relvas da Golegã/Alpiarça apreço e admiração: primeiro o Pai, Carlos, ganadeiro e fotógrafo, depois o filho, José, agricultor, governante, grande coleccionador de artes plásticas e decorativas.
Figueiró dos Vinhos, onde Malhoa teve atelier e residência de Verão, recebeu agora desenhos e pinturas de Malhoa conservados na "Casa dos Patudos", o solar que José Relvas reconstruiu em Alpiarça, com traço de Raul Lino, há pouco mais de um século. A exposição intitula-se Os corpos e as almas. Obras de José Malhoa na colecção da Casa dos Patudos e é comissariada por José António Falcão que também coordenou o catálogo. Dela faz parte o estudo "Camponesa", óleo sobre tela datado de 1903.

 
Louça das Caldas no Brasil  

Conta José Hermano Saraiva, então embaixador no Brasil, um jantar/magusto que ofereceu no jardim da sua casa a jornalistas brasileiros. Como não era adequado usar a louça Companhia das Indias da embaixada, veio às Caldas da Rainha e na Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro encomendou três grandes caixotes de louça para uma refeição. Escreve nas suas Memória s que o Sol vem publicando ("6ª Década", p. 15): "A louça era das Caldas, cerâmicas muito vistosas: as folhas de couve, os cachos de uva, toda aquela fantasia dezanoviana do Rafael Bordallo Pinheiro. A Maria de Lourdes insistia delicadamente, dizendo que a louça das Caldas não pode servir em caso nenhum uma embaixada. Mas o certo é que teve um êxito extraordinário. Os meus convidados faziam à saída, gentilmente, o elogio da louça, e pediam para levar uma recordação. Alguns levaram duas ou três recordações. Naturalmente, cada um levou as que quis. Sempre que era possível, os empregados da embaixada lavavam a louça que estava servida, embrulhavam-na e entregavam-na a quem pedia. Mas muitos nem sequer pediam: metiam os pratos debaixo da roupa que vestiam e saiam apressadamente. Recordo que no fim de servir o jantar, da baixela que eu tinha comprado para duzentas pessoas, já só restava um centro de mesa tão grande e pesado que ninguém o levou. Esse extraordinário êxito da louça das Caldas numa festa de jornalistas foi para mim uma lição. Há riquezas em Portugal que nós desconhecemos".

 
Património empresarial do século XX - Fichas  
Contributo para um inventário das empresas que marcaram a história do século XX nas Caldas, com base em fontes orais. Agora: Seol, Frami e Capristanos. Outras se seguirão. Seol
Frami
Capristanos
D. Carlos a banhos  
O rei D. Carlos permaneceu nas Caldas durante quase todo o mês de Agosto de 1896. D. Amélia veio visitá-lo. A vila a ambos recebeu com as honras da praxe. Rafael Bordalo Pinheiro decorou os Paços do Concelho para receber a ilustre visita. O Futuro das Caldas, Semanário Independente, Noticioso, Agrícola e Literário, dirigido por Ricardo Vasques, e que se começou a publicar a 1 de Agosto, fez o relato das chegadas e noticiou alguns passos do monarca. O Futuro das Caldas
 
A Rainha nas Caldas  

Sob que fomas a rainha fundadora está presente no património cultural caldense? Que vestígios do seu tempo e da sua acção reconhecemos e conservamos? Como é que a sua memória foi evocada e celebrada nos séculos seguintes? De que modo a criação artística contemporânea tem abordado o legado de Leonor?
Trabalho de pesquisa e selecção que serviu de base a uma intervenção no Café Central a convite da Associação Forense do Oeste a 31 de Maio de 2007, com a colaboração de Tânia Jorge e Dora Mendes.

A Rainha nas Caldas
 
Outras memórias de Peniche  
Livro lançado a 25 de Abril. Exposição de fotografias no Centro Português de Fotografia, no Porto.  
Roteiro literário  

O café Central

Voltei ao café onde me levavam
quando rapaz. E onde entrei algumas vezes quando
ia às Caldas. Na parede
o unicórnio, o cavalo alado, um terceiro espécime mais pequeno
que certa aura ilumina
bailado em ouro de gentileza
sobre azul que fôra turquesa e o restauro tornou azul
ganga. A sala abre sobre
a praça. O trânsito, tal como hoje, circula pela esquerda (coisa)
elogiada pelos lábios murmurantes da política) e
o mercado da fruta - raiz de todo o comércio, espécie de relíquia
ninguém impede o rapazio de vender berlindes e
de cantar a sua própria canção.

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos, Lisboa, Relógio d'Agua, 2006

 
Comentário ao Mapa de Peniche assinado por Pedro Teixeira em 1634  

" É muito interessante pois embora não tenha exactidão de pormenor (o Convento que apresenta não seria de "Santo António" mas de São Francisco - a localização da fortaleza em relação à vila não é correcta - não apresenta o "rio" de Atouguia que desaguava na lagoa, etc.) mas dá uma boa ideia do istmo na época"

"Foi a primeira vez que vi atribuida a designação de "Santo António" ao antigo Convento de Peniche. Pertencia à Ordem Franciscana e a sua designação mais conhecida era de "Convento do Bom Jesus" ou "do Bom Jesus do Abalo". Curiosa é também a inscrição "Plataforma" situada a Sul do que seria a "primeira fase" do que é hoje a Fortaleza. Talvez com esta indicação se pretendesse aludir à criação de uma plataforma (então já executada mas recente) sobre um "carreiro" existente no meio dos rochedos sobre os quais assenta a Fortaleza e de que, certamente, conhece o respiradouro. É curioso também que o mapa não apresente o "Baluarte Redondo", tido como parte dos primeiros trabalhos de fortificação do local, mas sim um edifício que poderia ser a "torre" que deu o nome à antiga esplanada da Fortaleza (actualmente em obras), que já foi "Campo D. João IV" e hoje é oficialmente o "Campo da República", mas que toda a gente em Peniche continua a conhecer por "Campo da Torre".

Carlos Sá (23 de Março de 2007)

 
Peniche na obra de Figueira e Josefa?  

Mariano Calado defendeu a hipótese de serem de Peniche as rendas de bilros da túnica com que a pintora Josefa de Óbidos vestiu o Menino Jesus Salvador do Mundo em 1673. Recentemente (exposição Baltazar Gomes Figueira, 1604-1674. Pintor de Óbidos "que nos Países foi Celebrado" realizada em Óbidos, em 2005), o pintor Jorge Estrela viu nos dois quadros representando o mês de Março, da autoria, um, de Baltazar Figueira, o outro, de sua filha Josefa de Ayala, a figuração do porto e casario de Peniche. Cito:

"Pesem outras opiniões em contrário, a cidade fortificada é Peniche, num período que precede de pouco a intervenção de Nicolau Langres, no final de Seiscentos, e deixa adivinhar a silhueta medieval. A volumetria, que em Baltazar aparenta seguir a realidade, origina em Josefa uma construção ideal amplificando o modesto casario de Peniche. (...) A pintura de Josefa mostra um acontecimento festivo, com grandes navios ao largo, uma galera engalanada, e a agitação de pequenos barcos junto à porta da entrada da vila. Várias leituras, nem sempre concordantes, tentaram interpretar essas movimentações. A última versão de Vitor Serrão, que supõe que os festejos são uma evocação alegórica do estabelecimento da paz com a Espanha, decidido nas Cortes em Março de 1668, parece resolutamente explicativa".

Vitor Serrão, no catálogo da exposição Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco (2ª ed. 1993), afastara a hipótese Peniche, anteriormente defendida por Reis Santos. Cito igualmente:

"Não deve trata-se de uma perspectiva da vila de Peniche, a partir da praia do Baleal, como não cremos também (como adiantou Hernández Díaz) que seja uma vista da praia de Lisboa. Tratar-se-á de uma perspectiva fantasiosa, quanto ao desenho do casario e quanto ao fundo acastelado, e reforçada por apontamentos de visu nos trechos movimentados de figurinhas e de embarcações, nesse caso quiçá segundo apontamentos "ao natural" da Lagoa de Óbidos ou da Foz do Arelho".

 
Baltazar Gomes Figueira, Mês de Março, c. 1645-1650
Josefa de Ayala, Mês de Março, 1668
 
Peniche em 1634  

Em 1622, o rei Filipe IV incumbiu um jovem cosmógrafo de elaborar um roteiro completo das costas dos seus reinos de Espanha e Portugal. Para cumprir este encargo, não bastaria efectuar uma compilação das informações disponíveis sobre os portos e cidades mais importantes, seria necessário realizar observação directa e local. Tarefa gigantesca que se considerou dever ser executada com um critério unitário, motivo pelo qual foi atribuída a um único especialista.

O resultado da empresa tinha sido considerado perdido, esbatendo-se a própria autoria. Descoberto recentemente na Hofbibliothek em Viena, verificou-se que o trabalho tinha sido elaborado pelo cosmógrafo português Pedro Teixeira, nascido em Lisboa em 1595 e falecido em Madrid em 1662.

Até agora, Pedro Teixeira - que trabalhou para Filipe III e Filipe IV, ao longo de quatro décadas - era sobretudo conhecido pela autoria do mapa da cidade e das instalações da corte de Madrid de 1656 ( Mantua Carpetatorum ). Membro de uma família de cartógrafos, filho de um cosmógrafo-mor, neto de um chanceler-mor do Reino de Portugal, e irmão de outro cosmógrafo, Pedro Teixeira realizou, desde 1618, levantamentos cartográficos importantes como a dos estreitos de Magalhães e São Vicente e outras missões de reconhecimento em Itália, França, Gibraltar, Norte de África, e naturalmente, em Espanha.

Peniche no Atlas
 
Introdução à história das Caldas da Rainha: cronologia  
1. Antes da fundação (1222-1483) 1222 - 1483
2. Fundação ( 1484-1532) 1484 - 1532
3. Estabilização (1533-1705) 1533 - 1705
4. O século das reformas (1706-1799) 1706 - 1799
5. As termas da moda ( 1800-1896) 1800 - 1896
6. Das termas à cidade (1897-1931) 1897 - 1931
7. História recente (1932-1974) 1932 - 1974
Publicado originalmente em João B. Serra, Introdução à História das Caldas da Rainha, 2ª ed., Património Histórico -Grupo de Estudos, 1995 Cronologia 1222-1974 (pdf)
Caldas da Rainha:  
Guião  

Na segunda metade do século XIX, quando "mudar de ares", no Verão, entrou nos hábitos das elites urbanas, Caldas da Rainha tornou-se um destino quase obrigatório. Além da família real, com residência dedicada na vila, nomes sonantes da política, dos negócios, da vida intelectual, ali permaneciam duas semanas entre finais de Julho e princípios de Setembro, em hotéis, pensões, casas alugadas. A imagem que das Caldas se construiu então, e perdurou pelo século XX, é em boa medida uma imagem literária, alimentada pelo encanto, pela ironia, pela nostalgia dos nossos escritores (a título de exemplo: Júlio César Machado, Pinheiro Chagas, Eduardo Coelho, Fialho de Almeida, Abel Botelho, Manuel de Sousa Pinto, Augusto de Castro, António Ferro, Luís Teixeira).

 
e Guia  

Caro visitante: a breve introdução histórica que acaba de ler despertou-lhe o interesse em (re)conhecer as Caldas da Rainha? Isso significa que está disponível para percorrer a cidade, descobrir os sinais do tempo, dialogar com aqueles que a construíram no passado e que a fazem hoje, eventualmente participar na identificação das opções e desafios que se colocam ao seu futuro.[...]

CR Guião e guia
Paredes de Louça
A utilização do azulejo como material de revestimento de fachadas pelos proprietários de edifícios generalizou-se nas Caldas da Rainha no último quartel do século XIX. O período caracteriza-se, aliás, por um surto construtivo, induzido pelo significativo reforço da capacidade de atracção populacional da vila, bem como pela ocorrência de mudancas significativas na oferta local de cerâmica, com a adopção de novas tecnologias e modelos e o lançamento no mercado de novos produtos. Desde então, embora com frequência e ritmo desiguais, não mais o azulejo deixou de assinalar a sua presenca no aglomerado urbano. Em 1993, a associação Património Histórico - Grupo de Estudos editou um trabalho onde se repertoria essa evolução até aos nossos dias. Sobre um levantamento que se pretendeu exaustivo de casos, contemplando não apenas os revestimentos azulejares de fachada, com alguma cerâmica parietal de feição escultórica, operou-se uma selecção segundo critérios de representatividade e exemplaridade. A pesquisa foi realizada por Margarida Araújo. O registo de imagem deve-se a Joaquim António Silva. A acompanhar essa edição, hoje esgotada, foram distribuidos 9 postais que a seguir se reproduzem.
Azulejo Secla (Ferreira da Silva). R Cândido Reis, 33
Azulejo de padrão "Quinta da Bacalhoa". P. 5 Outubro, 48
Azulejo de padrão "Folha". R. Almirante Reis, 34
Azulejo de padrão "Arte Nova". R. Gen. Queirós, 46
Azulejo de padrão "Gafanhotos". Museu Cerâmica
Azulejo de padrão.R. Cor. Andrada Mendoça, 16.
Azulejos de padrão. R. Heróis G. Guerra, 65
Painel "Bombeiros" (Herculano Elias). R. 31 Janeiro
Friso "Arte Nova".R. Miguel Bombarda, 53
A produção do Oeste  
Esta área especializada de produção de vinho foi articulada entre si e com a capital no final da década de 1880, através do caminho de ferro. Depois das linhas do Leste (1863) e do Norte (1864), a linha do Oeste, partindo de Lisboa, chegou a Torres em 1886, a Sintra em 1887, e à Figueira da Foz em 1888. De facto a linha tornou mais cómodas e rápidas as deslocações, mais baratos os transportes de pessoas e mercadorias. Ela foi criada para servir o turismo das praias e das termas da região (de Mafra e Torres às Caldas e Alcobaça), a indústria e as frutas (Caldas, Alcobaça) e a saída dos vinhos destinados ao abastecimento de Lisboa e dos mercados coloniais. Mas também ofereceu a toda uma região um eixo estruturante, com os seus apeadeiros e as suas estações, os seus armazéns e cais de embarque e desembarque, em suma um sistema de circulação. Esse eixo tem como polo orientador Lisboa e é tanto mais coerente quanto essa proximidade se faz sentir activamente.
Notas sobre o caso do Oeste
Do hospital à cidade  
A fundação, em 1485, do Hospital das caldas de Óbidos inscreve-se num novo modelo de assistência, de que há outros exemplos no País, e numa reformulação de conceitos terapêuticos cuja prioridade para as Caldas da Rainha tem sido destacada. Com as suas 7 enfermarias e 110 camas, este Hospital foi um dos maiores do seu tempo, só ultrapassado precisamente pelo da capital do Reino. Distingue-se porém de todos os outros pela circunstância de recorrer a "uma só medicina de banhos". Comunicação (pdf)
Imagens da cidade  

O bilhete postal ilustrado, as revistas, guias e folhetos turísticos, os cartazes promoveram uma imagem da cidade: elegeram os pontos fortes, exploraram os elementos de atracção, apontaram o que consideravam pitoresco, orientaram as preferências de visitantes e influenciaram o olhar dos próprios residentes.

Esta imagem, capa de um Guia Turístico editado em 1955, é da autoria de Hansi Stael, artista de origem húngara, nascida em 1912 e que trabalhou para a fábrica Secla entre 1950 e 1956. Stael, que trouxe movimento e cor à pintura de faiança - ficaram célebres os seus pratos com cenas populares do mercado e da vida piscatória - desenhou aqui um cartaz alusivo à região e aos seus produtos mais emblemáticos (Óbidos, Alcobaça, Batalha, Nazaré, Foz do Arelho), representando as Caldas através de uma camponesa que vende fruta (e peixe) na Praça .

 
Lagoa de Óbidos e a Foz do Arelho  
Em 2004 participei num Seminário promovido pela associação Nostrum, organizado por Maria João Carvalho, sobre o "Sistema lagunar costeiro da Lagoa de Óbidos". Reencontrei o guião da intervenção, reli e actualizei a bibliografia e juntei-lhe imagens do precioso espólio fotográfico de Fernando Daniel de Sousa. Viajo entre uma lagoa de camponeses/pescadores-mariscadores e uma lagoa de turistas e de turismo, entre o povoamento num recesso defendido (a aldeia da Foz do Arelho) e o empreendimento que se debruça sobre o mar. Resumo Seminário
Apontamento histórico
 
Imagens da cidade  

António Duarte é o autor desta capa de um desdobrável editado pela ROTEP sobre as Caldas da Rainha, em 1955.

Nasceu em 1912, nas Caldas da Rainha, onde frequentou a Escola Industrial e foi aluno de mestres ceramistas, como Francisco Elias. Diplomou-se pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, onde foi professor titular da Escultura. Tem uma vasta obra como retratista e e autor de obra pública. Legou á sua cidade um acervo de maquetes, estudos e algumas peças suas, além de um espólio bibliográfico e uma colecção de arte sacra.