Leda e o Cisne: mito, artes e cerâmica João B. Serra [docente da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha] |
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1. O mito de Leda e o Cisne Segundo a versão clássica desta narrativa mitológica grega, Zeus, desejando Leda, usou um disfarce para se aproximar dela sem provocar repúdio [1] . Leda - nome muito comum na Grécia antiga - era casada com Tíndaro, Rei da Lacedemónia, e recusara as pretensões do deus dos deuses. Caprichoso e dominador, Zeus submetia mulheres pela força ou pelo artifício. Neste caso, tomou a forma de um cisne, deslizando pelo Rio Eurotas onde Leda se banhava. Para afastar suspeitas e despertar a compaixão de Leda, apresentou-se perseguido por uma águia. Da união fortuita de Leda com Zeus, somada à união com Tíndaro, que aquela não prejudicou [2] , resultou algo também de excepcional - dois ovos, cada um deles com um par de gémeos: Polux e Climnestra, Helena e Castor. Figura mágica, o cisne, animal gracioso e de porte majestático, dotado de elegância, equilíbrio e força, surge em diversas construções míticas como animal misterioso, transformista e símbolo de fertilidade. Na literatura medieval (sécs XII-XIII), o cavaleiro de Deus, Lohengrin, filho de Parsifal, é um cisne, ou melhor, um jovem que corre mundo esperando a oportunidade de saír do seu encantamento [3] . Na mitologia grega, o cisne foi também associado a Apolo, deus da luz, das artes e também da adivinhação. Certamente, foi por este seu dom que o cisne - animal que pressente a sua própria morte, cantando-a pela última vez - se tornou atributo daquele deus [4] . O mito de Leda e o Cisne ilustra uma das funções centrais de toda a mitologia, designadamemte a grega: ilustrar a possibilidade de relação entre o mundo dos deuses e o mundo dos humanos. Neste caso, a relação originou novos seres, saídos dos ovos que Leda pôs (segundo algumas versões apenas um) e onde se encontraram, lado a lado, deuses e humanos. Castor e Climnestra, filhos de Tíndaro, constituiram, um em cada ovo, o par de deuses mortais, enquanto Polux e Helena eram filhos de Zeus e, portanto, imortais. Os dois rapazes distinguiram-se como guerreiros, participando na expedição dos Argonautas. Confrontado com a morte de Castor, Polux pediu a Zeus que lhe concedesse a imortalidade, mas Zeus permitiu apenas que a partilhassem entre ambos, vivendo e morrendo à vez. Os Dióscuros, assim chamados por serem filhos de Zeus, presidiam aos Jogos Olímpicos e eram invocados pelos gregos como protectores dos navegadores e dos atletas. Gozaram por isso de ampla popularidade no mundo helenístico, a tal ponto que Gémeos foi o nome escolhido para designar uma constelação. Destinos trágicos tiveram as duas irmãs. Climnestra casou com Agamémnon, rei de Argos, cujo assassinato planeou para oferecer o trono a um seu amante. Helena, a mais bela mulher da Hélade, esteve na origem de perturbações e conflitos políticos, designadamente a Guerra de Tróia. Casada com Menelau, rei da Lacedemónia e irmão de Agamémnon, fora raptada por Paris, príncipe troiano. Esta versão do mito coexistiu todavia com outras mais ou menos distintas, sinal de um complexo processo de gestação. As variantes cobrem aspectos relacionados tanto com a genealogia de Tíndaro e Leda, como com a natureza e atributos da sua descendência. De facto, a construção do mito, atestada desde as primeiras obras escritas e sobretudo a partir do século V a.C, prolongou-se por muitos séculos. A versão que triunfou sobre as concorrentes acentua uma espécie de razão natural (por exemplo, o ovo, símbolo primordial das mitologias, tem uma origem explicável em função da forma que o progenitor assume) e dá uma prevalência ao lugar de Leda (segundo alguns, sinónimo de mulher, esposa), à sua irresistível beleza e à sua espantosa fertilidade. [1] Diz Helena no drama de Euripedes do mesmo nome: "Meu pai é Tíndaro. Há no entanto quem diga que Zeus, sob a aparência de um cisne, voou até junto de minha mãe Leda e conseguiu unir-se a ela, fingindo fugir da perseguição de uma águia" ( Helena , 17,21). [2] Apolodoro (III, 10,7:): "Zeus em forma de cisne uniu-se a Leda e na mesma noite o fez também Tíndaro; Zeus deu origem a Polux e Helena e Tíndaro a Castor e Climnestra". [3] Chevalier au Cygne , romance medieval [4] Disse Sócrates, pouco antes da execuçao a que fora condenado : "Mais ceux-ci, en leur qualité, je pense, d'oiseaux d'Apollon, ont le don de la divination et c'est la préscience des biens qu'ils trouveront chez Hadès qui, ce jour-là, les fait chanter et se réjouir plus qu'ils ne l'ont jamais fait dans le temps qui a précédé. Et moi aussi, je me considère comme partageant la servitude des cygnes et comme consacré au même Dieu; comme ne leur étant pas inférieur non plus pour le don de divination que nous devons à notre Maître; comme n'étant pas enfin plus attristé qu'eux de quitter la vie!" Platão, Fédon . |
01 - Escultura grega em terracota, atribuída à escola de Timothéos, 350 aC, Museu do Louvre.
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02 - Leonardo da Vinci: estudo para "Leda e Cisne" (Devonshire) | ||
03 - Leonardo da Vince: estudo para "Leda e Cisne" (Roterdão) | ||
04 - Leonardo da Vinci: "Leda e o Cisne" (cerca dde 1510), cópia | ||
05 - Della Robia (Luca ou Girolamo), "Leda e o Cisne", 1540 | ||
06 - Atribuido a Rossi Fiorentino, depois de 1532 (possívelmente inspirado num trabalho perdido de Miguel Ângelo) |
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07 - Gustave Moreau, "Leda e o Cisne", 1865-1875 | ||
08 - François Auguste Rodin,"Leda e o Cisne" s.d. | ||
2. Leda e Cisne nas artes do Ocidente A relação amorosa entre Leda e o Cisne foi abundantemente tratada nas Antiguidades grega e romana: nos vários suportes das artes plásticas e decorativas, da estatuária ao mosaico, da pintura mural à ourivesaria; e em diversos registos - da sedução, isto é, de encontro entre parceiros, à submissão, em graduações distintas de violência. Apesar de um ou outro afloramento literário, o mito foi banido das representações artísticas medievais. A cultura humanista do século XV recuperou-o, porém, partindo dos textos clássicos, nomeadamente Ovídeo e as suas Metamorfoses . O interesse renascentista pelo legado greco-romano, sustentado em achados arqueológicos desse período, permitiu reintegrar, a partir daí, a história dos amores de Zeus e Leda na arte ocidental. Nomes cimeiros da pintura e da escultura do século XVI propuseram interpretações do mito, com variantes que jogam com o papel do enquadramento paisagístico, a graciosidade do cisne, a atitude de Leda, o tipo de contacto físico entre os dois amantes e o erotismo da situação. Mas foi com Leonardo da Vinci, de quem conhecemos dois estudos e uma versão em cópia de discípulo seu, que Leda e o Cisne definitivamente obteve consagração como grande tema das artes plásticas do Ocidente. É possível estabelecr um itinerário que partindo dos Renascentistas (além de Da Vinci, Giampetrino, Baccio Bandinelli, Andrea del Sarto, Bachiacca, Miguel Ângelo, Bartolomeo Ammannati, Corregio, Tintoretto, Paulo Veronese, Rosso Fiorentino, Della Robia), passe por Alessandro Varotari (Padovanino), Peter Paul Rubens e François Boucher (século XVII e XVIII), por Theodore Gericault, Gustave Moreau, Paul Cézanne, Paul Prosper Tiller e Auguste Rodin (século XIX). No século XX, Leda e o Cisne surge nas obras de Klimt, Botero, Laszlo Moholy-Nagy, Salvador Dali e Henri Matisse, para só citar figuras fundamentais. |
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09 - Klimt, estudo para Leda, 1917 (a tela "Leda e o Cisne" foi destruída durante a II Guerra) | ||
10 - Dali, "Leda Atómica", 1949
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11 - Matisse, "Jupiter e Leda", 1944-1946 | ||
3. Leda e Cisne na pintura e na escultura portuguesas Vieira Portuense, pintor de projecção na Europa do século XVIII, assinou em 1798 uma Leda e o Cisne. E, apesar de o naturalismo não se ter entusiasmado com este relato mitológico, no século XX muitos foram os artistas que a ele voltaram, com citações ou mais ou menos explícitas: João Cutileiro, José Aurélio, Nikias Skapinakis, António Dacosta, Julio Pomar, Julião Sarmento, por exemplo. Por outro lado, uma complexa modulação de relações entre mulheres e aves pode afirmar-se que é tema recorrente nos desenhos de Paula Rego. |
12 - Vieira Portuense, "Leda e o Cisne", 1798 | |
3. Leda e o Cisne na cerâmica das Caldas Não existe evidência de que a cerâmica caldense tenha efectuado qualquer abodagem ao mito, antes da década de 90 do século XX. O ceramista Herculano Elias apresentou uma escultura cerâmica figurando a relação erótica do cisne com Leda, numa exposição efectuada nas Caldas da Rainha, em 1996 [1] . No ano anterior, Ferreira da Silva executara para o interior do edifício do antigo Bar-restaurante do Parque Rainha D. Leonor (o "Populus" dos nossos dias) um conjunto parietal formado por um painel de azulejos e figuras em alto relevo representando o cisne e a relação cisne-Leda-Tíndaro. Paralelamente à produção deste trabalho, Ferreira da Silva realizou desenhos sobre o mesmo tema, alguns dos quais integram colecções particulares. [1] Herculano Elias: Momentos de um Percurso , Galeria Municipal Osiris, Maio a Junho de 1996, peça nº 27 (não reproduzida no catálogo). |
13 - Nikias Skapinakis, "Leda e o Cisne", 1973
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14 - José Aurelio, máscara, 1983 | ||
15 - José Cutileiro, "Leda e o Cisne", 1998 | ||
16 - Paula Rego, " The Dybbuk", 1999 | ||
4. Intervenção de Ferreira da Silva na edição "Monsaraz Museu Aberto", de 2002. O convite feito a Ferreira da Silva para uma participação especial no programa Monsaraz Museu Aberto foi efectuado em finais de 2001 [1] . O artista manifestou a intenção de realizar as peças destinadas a essa exposição numa oficina de S. Pedro do Corval, localidade do concelho de Reguengos com uma forte implantação de oficinas cerâmicas. Os proprietários da olaria "Guimarães e Velho" aceitaram o desafio. Durante cerca de 2 semanas, entre 20 de Maio e 5 de Junho de 2002, Ferreira da Silva permaneceu em S. Pedro, trabalhando nas instalações dos dois mestres oleiros, serviu-se das pastas geralmente utilizadas por eles, das suas peças correntes e dos seus utensílios de trabalho, a começar pelas suas próprias mãos. "Leda e o Cisne" tomou forma e coreografia a partir dos alguidares, das panelas, das bilhas, canecas, pratos, etc., abertos por Velhinho e Guimarães nas suas rodas de oleiro de S. Pedro do Corval. Foi no entanto necessário transportar as principais componentes da instalação até às Caldas. Dadas as suas dimensões e exigência técnicas, sobretudo quanto à temperatura de forno, não puderam ser acabadas nas instalações da oficina de S. Pedro do Corval. Foram cozidas na fábrica Molde, das Caldas da Rainha. A edição de 2002 de Monsaraz Museu Aberto decorreu de 20 a 28 de Julho, sob a epígrafe "Que rompam as águas", versos iniciais de poema de Eugénio de Andrade. [1] Formulou-o a sua coordenadora, Drª Ana Paula Amendoeira. Teve origem numa apresentação que eu próprio fiz da obra cerâmica de Ferreira da Silva às Jornadas Ibéricas de Olaria e Cerâmica realizadas em S. Pedro do Corval, em Maio de 2001. A associação Património Histórico-Grupo de Estudos colaborou na logística desta intervenção. |
17 - Herculano Elias, "Leda e o Cisne", 1996 |
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18 - Ferreira da Silva, Pormenor da composição "Leda e o Cisne" (Bar "Populus"), 1995 | ||
19 - Ferreira da Silva, Pormenor da composição "Leda e o Cisne" (Bar "Populus"), 1995
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20 - Ferreira da Silva, Cena central da composição "Leda e o Cisne" (Bar "Populus"), 1995 | ||
21 - O lago do Alqueva visto de Monsaraz | ||
5. Leda e o Cisne em Monsaraz A instalação organizada por Ferreira da Silva para Monsaraz era constituida por diversos conjuntos de peças cerâmicas e dois desenhos. Ocupavam um páteo contíguo ao edifício da Universidade de Évora que confina com a torre da Ermida de S. Bento, localizada junto à porta da vila. A disposição das peças formava um percurso, marcado no chão através de placas grosseiras de barro cozido, o qual conduzia às figuras de Leda e o Cisne, com cerca de 4 metros de altura. O caminho e a reunião do par eram pontuados por diversas figurações do mito: alguidares pintados, torsos femininos, composições conjugando formas de seios e de falos. Ferreira da Silva justificou a escolha do tema com uma alusão à formação recente do grande lago nas imediações de Monsaraz. De facto, a paisagem circundante da vila viu-se alterada a partir de 8 de Fevereiro de 2002, data em que as comportas da barragem do Alqueva foram fechadas, trazendo uma mancha de água até ao sopé do monte onde se ergue a povoação fortificada. Na imaginação do artista, Leda apareceu confinada a Monsaraz, onde Tíndaro a deixou antes de partir à frente dos exércitos espartanos para a Guerra do Peloponeso. Na povoação, a vida decorria serena. Leda passeava ao longo da muralha perscrutando o horizonte. A estranheza de um fenómeno inesperado - a subida das águas do Guadiana - quebrou a monotonia da pacata Monsaraz. Do lago formado pelas águas derramadas sobre as antigas margens, um belo cisne emerge, acercando-se da Rainha. O encontro é testemunhado por um coro de personagens construídos sobre a memória olárica da região. Mas a forma fálica que Ferreira da Silva associou ao cisne (já presente nos relevos do "Pópulus") encontra-se em manifestações frequentes na região, nos menires e cromeleques que atestam a presença de comunidades humanas naquela zona, no Neolítico final e no Calcolítico [1] . Um dos mais espectaculares menires de Monsaraz, o menir do Xarez, tivera de ser retirado da herdade onde estava implantado uns meses de antes de se iniciar o enchimento da barragem, exactamente em Novembro de 2001 [2] .[1] Cf. Victor S. Gonçalves e Ana Catarina Sousa, "Novos dados sobre o grupo megalítico de Reguengos de Monsaraz: o limite oriental", in Muita gente, poucas antas? Origens, espaços e contextos do Megalitismo. Actas do II Colóquio Internacional sobre Megalitismo . Victor S. Gonçalves (ccord.), Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2003.
[2] A operação teve, na altura, tratamento jornalístico, tendo os componentes do cromeleque sido transportados para uma propriedade municipal situada junto do Convento da Orada, nas imediaçoes de Monsaraz. Foram reinstalados em 2003. |
22 - Cromeleque do Xerez
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23 - Ferreira da Silva e Mestre Velhinho na Olaria Guimarães e Velho, Maio de 2002 | ||
24 - Aspecto da olaria Guimarães e Velho com as peças em cru da instalação "Leda e o Cisne", Maio de 2002 | ||
25 - Ferreira da Silva, instalação "Leda e o Cisne", Monsaraz 2002, início do percurso em tijoleira rústica pintada
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26 - Ferreira da Silva, instalação "Leda e o Cisne", Monsaraz, 2002, parte do percurso em tijoleira rústica pintada | ||
27 - Ferreira da Silva, instalação "Leda e o Cisne", Monsaraz, 2002, conjunto de torsos femininos | ||
28 - Ferreira da Silva, instalação "Leda e o Cisne", Monsaraz, 2002, conjunto de alguidares
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29 - Ferreira da Silva, instalação "Leda e o Cisne", Monsaraz, 2002, alguidar com objecto de forma fálica | ||
30 - Ferreira da Silva, instalação "Leda e o Cisne", Monsaraz, 2002, objectos de forma fálica e torso feminino | ||
6. Conclusão A instalação de Ferreira da Silva em Monsaraz foi concebida e executada num contexto específico, cujas elementos integrou e valorizou: o contexto histórico e geográfico (Monsaraz, a sua nova relação com a albufeira do Alqueva, o património megalítico) e as condições de produção: uma oficina de olaria numa localidade (S. Pedro do Corval) onde a actividade dominante é a cerâmica. A esta especificidade, o artista acrescentou a citação de um mito que constitui uma das referências fundamentais das artes plásticas do Ocidente - a história complexa das relações entre Zeus e Leda, história de erotismo e artifício, de sedução e de engano, de perversidade e de inocência, de cumplicidade e violação. E implicou, num registo expressivo, alguns apontamentos de cerâmica caldense, nomeadamente nos processos de modelação, de pintura e vidração, e de cozedura. O mito de Leda e o Cisne veio assim a Monsaraz contar uma história local num plano global e, de certa forma patentear a história da própria cerâmica: uma arte de transformação e de "ilusão". Neste caso, de transformação dos produtos tradicionais da olaria, cujas formas são ditadas pelos instrumentos - a mãos e a roda - em construções efémeras que falam de mundos cujas fronteiras foram quebradas pelo desejo de deuses e humanos. |
31 - Ferreira da Silva, "Leda e o Cisne", Monsaraz, 2002 |
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32 - Ferreira da Silva, "Leda e o Cisne", Monsaraz, 2002, pormenor da Leda | ||
33 - Ferreira da Silva, "Leda e o Cisne", Monsaraz, 2002, pormenor do Cisne |