Tesouros do Artesanato Português: Olaria e Cerâmica [1] de Teresa Perdigão (texto) e Nuno Calvet (fotografias) |
Agradeço o convite para participar na sessão de lançamento desta obra sobre olaria e cerâmica que a Verbo acaba de editar [2] . É bem significativo que ela ocorra nas Caldas, centro cerâmico com mais de 5 séculos, com uma larga projecção regional, nacional e até internacional. Foi pois como muito gosto que aceitei apresentar aqui duas ou três notas sugeridas pela leitura deste belo livro, com fotografias - muito claras, sintéticas - de Nuno Calvet, um fotógrafo com larga experiência de registo do património. Acresce que a autora do texto tem uma ligação forte às Caldas, onde vive e onde leccionou (na Escola do Magistério, na Escola Secundária Raul Proença). Formada em Línguas e Literaturas Modernas, obteve um mestrado em Culturas Regionais. Na última década, Teresa Perdigão tem-se dedicado aos temas apaixonantes dos costumes e tradições populares e da religiosidade. A pesquisa antropológica tem-na levado às mais recônditas aldeias do continente e das ilhas. Fez reportagens, algumas com a participação de um ilustre fotógrafo, também radicado nas Caldas, Valter Vinagre, e documentários. É autora de 6 livros: um sobre Festas e Romarias, outro sobre Máscaras e 4 do conjunto "Tesouros do Artesanato Português", de que 3 já vieram a público.
O tema do artesanato tradicional foi convocado nas últimas décadas por dois tipos de motivos. O primeiro prendia-se com a necessidade de promover o seu inventário, enquanto forma de cultura material de sociedades. A rápida decomposição e transformação da sociedade tradicional portuguesa, dos anos 60 até aos nossos dias, tornava esse trabalho indispensável e urgente, tanto para efeitos de estudo (tanto histórico como etnográfico), como para efeitos de registo patrimonial. "Até há bem pouco tempo, não havia, certamente, casa mais humildade ou solar mais afamado, que não tivesse uma "baixela" de loiça de barro. Lamentavelmente, desta bonita actividade, restam apenas, em Idanha-a-Nova - escreve-se num texto de apresentação municipal - , alguns fornos de olaria que dão nome a um bairro pitoresco desta vila. Mas, também na Zebreira a olaria era uma indústria rural, transmitida de pai para filho. Ambas as localidades apresentam modelos de fabrico semelhantes, diferindo apenas em alguns aspectos de ordem técnica, nomeadamente na limpeza do barro e na impermeabilização das peças. (...) Sensível a factores como a emigração, competição de novos materiais mais flexíveis e duradouros e dificuldade de adaptação a novos processos de fabrico (entre muitos outros aspectos), a Olaria do concelho de Idanha-a-Nova praticamente foi extinta após a década de 60. Numa tentativa de preservar e evitar um esquecimento colectivo desta indústria, foi editado pelo Centro Cultural raiano uma obra intitulada "Oleiros de Idanha" baseada numa excelente recolha de campo que poderá visitar, em exposição permanente, no mesmo Centro Cultural." Foi assim que enquanto alguns centros de estudos académicos lançavam programas de elaboração de monografias regionais ou sectoriais sobre o artesanato, instituições e entidades de âmbito local, algumas de natureza privada, promoviam a recolha de artefactos com a finalidade de procederam à sua musealização. A cerâmica foi envolvida nesse movimento, sobretudo no Norte do País, graças à dinâmica do grupo de investigadores animados por Eugénio Lapa Carneiro e do Museu de Olaria de Barcelos. Mas há que referir também o conjunto de investigadores que a Casa do Infante, da Câmara Municipal do Porto, mobilizou. Os arqueólogos trouxeram aliás a este movimento não apenas o seu contributo específico, relativo a épocas mais recuadas, mas com as suas tipologias influenciaram muitos levantamentos efectuados fora do âmbito estritamente arqueológico, quando não enveredaram eles próprios por épocas mais recentes, medievais, e até posteriores. O Primeiro Colóquio sobre História da Cerâmica Portuguesa Moderna, realizado na Caldas da Rainha, em Fevereiro de 1996, e as duas Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-medieval efectuadas em Tondela em 1992 e 1995 deram conta das direcções em que avançou este movimento de estudo. Em paralelo, a sobrevivência do artesanato tradicional, preocupa diversas instâncias públicas e privadas, que procuram por diferentes meios criar condições para evitar o desaparecimento de formas actividade que se tinham fixado em contextos sociais e económicos agora em rápida transformação. Encontramos sinais dessas preocupações em programas de revitalização do artesanato lançados e coordenados pelas Comissões de Coordenação Regional e pelo Instituto de Formação Profissional, de que resultaram, por exemplo, as magníficas monografias sobre o Artesanato na Região Norte, o Artesanato na Região Centro e o Artesanato na Região de Lisboa e Vale do Tejo. São igualmente conhecidos catálogos que este Instituto tem vindo organizar nos últimos anos ano contexto da Feira do Artesanato realizada em Lisboa. Nos finais da década de 80, emergiu em várias regiões do país atingidas por processos de erosão económica e social - perda demográfica, envelhecimento, abandono das actividades produtivas - um movimento em prol do desenvolvimento local baseado num forte apelo aos recursos endógenos. O artesanato, em estreita articulação com o património histórico-cultural, é um desses recursos que os militantes da animação local se propõem redescobrir, recuperar, revalorizar. A cerâmica, designadamente aquela que se produzia em meio rural, destinando-se prioritariamente ao consumo local, pôde assim, nalguns casos, ser reavivada. Apoios comunitários permitiram que os oleiros sobrevivessem, passassem o testemunho até encontrarem novos públicos, reconstituindo um mercado para produtos oláricos utilitários, ou atraindo os consumidores do mercado da saudade ou do turismo cultural. O livro de Teresa Perdigão ajuda a identificar algumas dessas situações. O panorama da olaria tradicional que esta obra nos permite traçar é contraditório, como seria de esperar de uma época de mudança profunda e acelerada, em que o estatuto original do artesão, estreitamente ligado a uma comunidade pequena, mais ou menos isolada, com as suas raízes e horizontes estabelecidas ao longo de gerações e gerações, se perdeu ou se alterou. Teresa Perdigão privilegiou no seu roteiro do artesanato cerâmico os homens e mulheres que se reivindicam de uma tradição e de uma tradição familiar. Nalguns casos, temos a impressão de que a continuidade se vai interromper ali. Noutros, parece-nos que uma transformação está em curso: novos sistemas de formação, novos modelos, talvez até novas tecnologias. O prestígio ancestral da olaria e dos oleiros não decorria apenas da função utilitária das suas criações. Sempre houve aí nesta arte algo de mítico, que alguns reportam à própria natureza (a terra misturada com a água e transformada pelo fogo) e à vida (o predomínio das formas arredondadas evocando o ventre da mulher grávida). Mas nela há sobretudo uma linguagem, onde os membros da comunidade se reconhecem nas mais diversas situações do quotidiano (a bilha da água, a cantarinha das prendas, a talha azeiteira, o pote de doce, a malga da sopa, o alguidar da roupa, etc, etc.). Ora, sucede que outras linguagens, mais urbanas e menos rurais, mais igualitárias e menos diversificadas, menos simbólicas e mais decorativas se impõem hoje, de forma irresistível, ao artesão. Poderá ele deter algum controlo sobre esse processo inevitável de aquisição pelas suas peças de uma nova linguagem? Não é desta discussão que o livro de Teresa Perdigão trata. Pura e simplesmente, ela quis inventariar, retratar a situação dos diversos centros de produção olárica tradicional. Socorreu-se da preciosa informação que a história e a etnocerâmica carrearam nas ultimas décadas. Mas foi lá. Falou com os próprios actores, registou as suas visões, optimistas ou pessimistas, as suas expectativas. Este é o grande mérito desta obra: fala de objectos e de pessoas, de objectos com pessoas dentro. [1] Lisboa, Verbo, 2003 [2] Sessão promovida pela Livraria Loja 107, a 3 de Dezembro de 2003 |