Eduardo Constantino: rigor e criatividade  

As exposições de Eduardo Constantino constituem sempre uma oportunidade maior de encontro com a cerâmica, as suas especificidades e as modalidades pelas quais se integrou na produção artística. A coexistência de uma cerâmica decorativa e artística, a par de uma cerâmica funcional e utilitária é uma prática milenar, que remonta às origens da produção. Mas o investimento pelas artes plásticas da disciplina cerâmica é um movimento internacional, com pouco mais de século e meio, que se tem aprofundado nas últimas décadas.
O contributo do centro cerâmico das Caldas da Rainha, onde Eduardo Constantino tem as suas origens, para esse movimento foi, em diversos momentos, pioneiro e original, e, sempre, uma fonte de sólidos valores que o percurso da cerâmica contemporânea incorporou. Sucedeu assim com a adopção do naturalismo, o chamado neo-palissy, na segunda metade do século XIX, a modelização cerâmica a partir do desenho, que teve em Rafael Bordalo Pinheiro um expoente de primeira grandeza, as experiências do estúdio da fábrica Secla dirigido por Hansi Stäel (e pelo qual passaram nomes significativos da modernidade das artes plásticas dos anos 60), o advento do design. Eduardo Constantino nasceu e formou-se num meio onde se cruzam diversas tendências da cerâmica contemporânea, práticas e autores, e onde um saber artesanal centenário foi actualizado no século XX pelas escolas, pela indústria e pelo sistema de formação profissional.
Radicado em França, há mais de três décadas, Eduardo Constantino desenvolveu uma produção cerâmica respondendo a desafios muito exigentes, tanto no plano técnico como no da exploração da expressão plástica. Ao longo deste período, enquanto conquistava uma projecção internacional, com menções nas revistas especializadas, presença em galerias e junto de coleccionadores privados e públicos, incluindo colecções museológicas, participou regularmente em exposições colectivas ou individuais em Portugal.
A obra cerâmica de Eduardo Constantino dá corpo a projectos muito ambiciosos, executados com grande rigor. O rigor cumpre-se na demarcação fina do campo de intervenção, na coerência das soluções adoptadas, no vigiado experimentalismo prosseguido com investigação dos materiais e processos, de que resulta um fio condutor, que unifica e define todo o seu trabalho.
Partiu de uma tipologia de formas cerâmicas bem referenciada, onde sobressaem as formas tradicionais de contentores cerâmicos, sem todavia cortar o caminho a algumas formas inovadoras, nomeadamente as que resultam de deformações e reconformações. Assim, tem-se vindo a notar uma preferência crescente pelos objectos de superfícies planas, construídos a partir da justaposição de placas, em substituição das formas rodadas iniciais. Mas, em qualquer caso, o autor tem mantido o nexo com os cânones da cerâmica decorativa que privilegiava os objectos susceptíveis de receberem um uso corrente: uma jarra, um canudo, um pote, uma caixa.
Constantino tem-se concentrado nos efeitos de cor, textura, vitrificação e brilho, obtidos através da aplicação de engobes e vidrados e dos métodos de cozedura e respectiva oxidação, com geral preferência pelas altas temperaturas, as do grés e porcelana.
A cerâmica é basicamente um conjunto de procedimentos que visam controlar a qualidade de um artefacto de argila submetido a alterações através da cozedura. E, de facto, é este o ângulo pelo qual Eduardo Constantino aborda a cerâmica. Os ceramistas sabem que há uma dose de imprevisibilidade nesse conjunto de operações e procuram condicioná-la, sem a eliminar. Recorrem à pesquisa e à experimentação, à observação e à comparação dos resultados obtidos em diferentes centros cerâmicos, com recurso a tecnologias e técnicas diferentes ou diferentemente combinadas.
Tem sido este o caminho do ceramista Eduardo Constantino. A linguagem plástica que exprime é realizada através do aprofundamento da disciplina cerâmica, e não de qualquer outra, como é o caso de aproximações à cerâmica com a marca da escultura, da pintura ou de ambas.
A esta unidade metodológica corresponde uma unidade problemática, o que reforça o rigor do trabalho do ceramista. Os jogos de cores e de texturas, de brilhos e de transparências constituem o essencial da procura plástica de Eduardo Constantino, em busca de novas combinações que possam surpreender sem dissolver os elementos de que compõem, de novos ritmos sem dissonâncias, de novos mistérios que não escondam pelo artifício a verdade da natureza que lhe subjaz.
Se a natureza é matéria, a reconstrução a que o ceramista procede, tirando partido do que podemos antecipar para melhor preparar a explosão da metamorfose, é um exercício idêntico ao da poética. Estamos perante o que os gregos, para distinguir a mera reprodução do real da narração criativa, chamaram transfiguração. A transfiguração torna possível um novo mundo. Este é talvez o conceito que melhor identifica a obra de Eduardo Constantino.
[In Eduardo Constantino: Chroma. Catálogo de Exposição. Óbidos, 2008]

 

Fotos de Margarida Araújo
100 Sentidos Com Sentidos

"Bonecos" das Caldas  

O momento exacto em que a produção de "bonecos" de louça fez o seu aparecimento no centro cerâmico caldense não foi ainda estabelecido. Os estudiosos têm acordado na atribuição de uma actividade pioneira, nesse domínio, a Maria dos Cacos, cuja oficina fazem remontar ao período 1820-1850. Tanto a designação como a datação foram obtidas, no entanto, através da tradição oral. Não foi apresentada evidência documental sobre esta unidade produtiva. Escreveu-se, e parece plausível admiti-lo, que Maria dos Cacos colocava os seus produtos em feiras, por todo om país, o que explica não só a sua larga disseminação, mas também a adopção de modelos encontrados noutros locais. Com toda a probabilidade, os oleiros caldenses reinventaram bonecos originários de outros centros e regiões, num processo de imitação/recriação tão comum na história da cerâmica.
As colecções disponíveis, públicas ou privadas, não desmentem, na ausência de outras fontes e de investigações mais aprofundadas, o que foi veiculado por tradição oral. Na primeira metade do século XIX adquiriu um lugar expressivo na louça vidrada caldense o fabrico de objectos inspirados na figura humana e animal, cuja forma é adaptada a funções utilitárias e decorativas, ou até, frequentemente, a um misto de ambas.
A peça emblemática desse período é um jarro em forma de mulher, vidrado a uma só cor. Conhecem-se algumas variantes deste jarro. Na mais comum, a mulher segura uma guitarra e o cabelo termina em trança, a qual faz a asa da garrafa. Alguns exemplares conhecidos desta peça apresentam traços mais toscos, sugerindo a existência de facturas mais ou menos elaboradas e até uma eventual apropriação pelas oficinas de meados do século XIX de modelos de cariz popular anteriores. Menor favor terá recebido a figura masculina, de que registamos dois exemplares, um de homem barbado tocando flauta e outro de homem barbado tocando guitarra. Ambos denotam uma certa rigidez de concepção.
Uma composição, de que chegaram até nós diversos exemplares, é a do cavaleiro montado, de boné, de chapéu de abas largas ou até de coroa régia. Negros e negras também serviram de motivo a peças figurativas de cerâmica caldense da primeira metade do século XIX.
O recurso à figura animal torna-se corrente em castiçais, paliteiros, apitos, canecas - objectos de pequena dimensão -, vasilhas de aguardente, moringues, suspensões decorativas e peças de jardim - objectos de dimensão superior. Cães, macacos, leões, touros, galos são os animais mais representados.
A oficina de Manuel Mafra, que em 1853 teria tomado de trespasse a de Maria dos Cacos (outro passo para o qual não dispomos de informação documental original) teve um forte impacte na projecção local, nacional e até internacional da cerâmica caldense. A mudança traduziu-se não só na quantidade de modelos, como na qualidade formal e na criatividade dos trabalhos saídos desta unidade produtiva. Mafra viria mesmo a ser o introdutor em Portugal da louça "neo-palissy", que em meados do século XIX se tornara apanágio de uma cerâmica muito exigente em várias cidades francesas. Para além desta linha conceptual e decorativa que invadiu todo o espaço da faiança, Mafra descobriu e desenvolveu a vidragem multicolor.
Assim, alguns modelos anteriores são revisitados, com outra paleta de cores e outro apuro formal, enquanto novas peças adquirem rapidamente um estatuto emblemático, distinguidas com uma procura diversificada. Parece estar neste caso um jarro em forma de lagarto ostentando as vestes de frade. Estamos perante uma peça que joga com o efeito de ilusão, tirando partido de uma duplicidade figurativa - o frade com cabeça de lagarto ou o lagarto vestido de frade - e funcional - um jarro para líquidos ou uma jarra decorativa. É talvez a primeira peça onde o humor é vincado como um valor a que a cerâmica pretende associar-se. Praticamente todas as oficinas e fábricas caldenses repetiram este jarro. Encontramos reproduções dele provavelmente oriundas de outros centros, como Barcelos.
Com Mafra e seus continuadores (José Alves Cunha, José Francisco de Sousa, Francisco Gomes de Avelar, e outros) é sobretudo a figura animal que reforça a sua presença na cerâmica, não apenas suportando as funções tradicionais de castiçal, paliteiro ou caneca, mas originando novas formas de objectos, como o jarro que assume a forma de cobra, o bule que se disfarça de perdiz, ou o macaco que comanda a tartaruga com a sua cauda enlaçada no pescoço do réptil. Com a entrada em actividade de novas oficinas, que a par da reprodução de modelos conhecidos, procuram impôr tipologias próprias, amplia-se não só o leque de animais convocados para a louça figurativa (burros, porcos, gatos, aves, peixes, répteis) como o de produtos utilitários (caixas, tinteiros, cinzeiros, floreiras).

 

 

Garrafa atribuida a Maria dos Cacos

Garrafa atribuida a Manuel Mafra

Churchill, por Lopes de Mandonça

Rafael Bordalo Pinheiro instalou-se neste centro cerâmico, com a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, em 1884. No que importa ao tema deste breve ensaio, a sua actividade saldou-se por três inovações. Em primeiro lugar, Bordalo retomou a figuração humana, conferindo à sua presença na cerâmica caldense uma nova dimensão e variedade. Artista do desenho, Rafael introduziu nesse domínio os valores próprios da disciplina: movimento e individualização, expressividade e ousadia. Estão nesta linha as diversas representações do Zé Povinho em objectos funcionais ou decorativos; a criação das figuras de movimento (ama, polícia, sacristão, cura) e as séries caricaturais que dedicou ao tema do Ultimatum britânico de 1890 e em geral à reacção nacionalista e colonialista dos finais do século XIX, ou a alguma figuras políticas do seu tempo (como o Visconde Faria, o Marquês de Franco, o Barriga). Em todas elas, o humor surge como marca identificadora, alimentada pelo excesso, pela surpresa ou pelo jogo da ambiguidade e engano. Em segundo lugar, a Fábrica de Faianças operou reduções de algumas figurações animais (perus, patos, touros) com sacrifício da sua funcionalidade. Esta linha de produção recuperava, requalificando-a, a tradição dos "paliteiros", termo a que o próprio Bordalo recorria para desdenhar essas pequenas peças um pouco ingénuas que Maria dos Cacos colocara no mercado meio século antes. Em terceiro lugar, Rafael Bordalo assinou uma série de pequenas estatutas em terracota representando figuras regionais. As representações são, neste caso, quase sempre miniaturais.
Nestas inovações encontrou o figurado caldense do século XX impulso e inspiração. A caricatura de figuras públicas, designadamente políticas, foi continuada por Avelino Soares Belo, e, mais tarde, na fábrica Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro Lda, fundada por Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, em 1908, por Lopes de Mendonça e Leonel Cardoso. Continua hoje com Constantino e Carlos Enxuto, por exemplo, depois de nos anos 80, Zé d'Almeida e outros caricaturistas gráficos terem orientado no Cencal um Curso de Cartoonismo para a cerâmica.
A produção de reduções de animais foi retomada na Secla dos anos 50/60 e tem hoje sobretudo raizes na produção cerâmica mais artesanal e popular.
 

Finalmente, a miniatura em terracota sobre motivos regionais está na origem de uma importante escola de miniaturitas, todos eles da família Elias (Francico Elias, o primeiro nome do círculo, foi aluno e colaborador de Rafal Bordalo que por ele tinha grande apreço. Além das figuras históricas, religiosas, regionais, os Elias acrescentaram ao trabalho em miniatura dois novos temas: cenas (e não apenas figuras) da vida rural e religiosa, e o presépio, trazendo para a cerâmica caldense uma tradição de barristas que remonta ao século XVIII e se radicou em vários centros de olaria popular.
[In Figuras & Figurado. Rostos, Almas e Máscaras no Figurado Tradicional e Contemporâneo Português. Lisboa, IEFP, 2008]

 
Louça das Caldas Na Exposição Universal de Paris, 1889  

A presença da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha obteve as seguintes consagrações na Exposição Universal de Paris e 1889:
Medalhas de Ouro - Rafael Bordalo Pinheiro (enquanto comissário régio)
Medalha de Prata - Pessoal da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha
Cavaleiro da Legião de Honra - Rafael Bordalo Pinheiro (por serviços prestado à Exposição)

 
 
A. E. F. de Cavaleiro e Sousa,
Uma Visita à Exposição Universal de Paris
em 1889
. Lisboa, 1892 (p. 302-303)
 
Painel azulejar da EBI Santo Onofre, Caldas da Rainha  
 
 
Pormenores do painel de Maria Mendes (1993), fotografado por Xaneca (2008)  
 
Ceramarte  

Localizada na Rua Pedro Alvares Cabral, no Bombarral, a Ceramarte foi fundada em 1969 por Virgílio Correia e sua mãe, Alice Correia.
Alice Correia dedicara-se anteriormente à investigação de modelos cerâmicos antigos, existentes em museus e colecções particulares. Com o auxílio de operários de oficinas da região de Coimbra, conseguiu reproduzir algums dessas peças, que apresentou em exposição também em Coimbra.
A Ceramarte explorou esse ramo da reprodução de pratos, travessas, azulejaria e peças dos séculos XVI a XIX de fabrico português. O logotipo da empresa manteve a relação com o nome de Alice Correia (AC). Iniciou a laboração em 1969. Nela trabalhou também Maria da Natividade Mendes (a ceramista Maria Mendes), que foi casada com Virgílio Correia. A fábrica foi encerrada em 1991.
Algumas páginas do catálogo da Ceramarte realizado por Maria Mendes):

 
 
Jorge de Almeida Monteiro  

A história da cerâmica tem no Bombaral duas páginas importantes: a Cerâmica Bombarralense (1944-1954) e a Ceramarte (1969-1991). À primeira está ligado o nome de Jorge de Almeida Monteiro, ao segundo o de Virgílio Correia e sua mulher, Maria da Natividade Mendes (Natas).

Jorge de Almeida Monteiro nasceu no Bombarral em 1908 numa família ligada ao pequeno comércio. Seu Pai, Custódio de Almeida Monteiro, tinha uma loja de vidros e louças. Frequentou nas Caldas da Rainha a Escola Primária Superior e a Escola Industrial e Comercial. Aqui começou pelo curso comercial, que não concluiu, para mais tarde se matricular no de cerâmica.
Casou, em 1938, com Atalanta, filha de Evaristo Judicibus, proprietário de uma tipografia. Almeida Monteiro divide o tempo entre a loja do pai e a gráfica do sogro. Faz trabalhos de reparação de mobiliário, utilizando o cobre e a madeira, aventurando-se por vezes na criação de peças em cobre martelado.
Alberto Morais do Vale, escultor e ceramista de mérito, director da Escola caldense organiza no Bombarral um curso de artes plásticas, no qual Almeida Monteiro se inscreve. Estávamos em 1940 e 1941. A frequência do curso estimulou-o a projectar a fundação de uma fábrica de cerâmica.
A Cerâmica Bombarralense L.da surgiria em 1944. Dedica-se à faiança, produzindo louça decorativa e azulejo.
A fábrica foi também local de encontro artístico e político. Julio Pomar e Alice Jorge, Vasco Pereira da Conceição e Maria Barreira, David de Sousa, Stella de Brito e Hernani Lopes, são alguns dos que o frequentam. O ambiente cultural e estético era vincado pelo neo-realismo. Na década de 50, António Dias Coelho faz experiências de cerâmica na Bombarralense. Foi nela também que, em 1944, o jovem pintor de cerâmica Ferreira da Silva, vindo de Coimbra aos 16 anos, principiou a sua carreira.
Em 1954, a Cerâmica Bombarralense fechou, na sequência de um incêndio que a apanhou descapitalizada. Almeida Monteiro monta uma oficina para os seus trabalhos de cerâmica, gravura e cobre martelado que funcionará até 1974. Recebe encomendas de painéis decorativos para diversas empresas.
Paralelamente desenvolve o interesse pela arqueologia, assinando diversos trabalhos com especialistas nacionais, como Octávio da Veiga Ferreira e Fernando de Almeida. Na Nazaré, localidade à qual a sua actividade se alarga, colaborou com Eduino Borges Garcia e apoiou a criação do Museu Etnográfico e Arqueológico Joaquim Manso.
Esteve presente nas Exposições Gerais de Artes Plásticas da Sociedade Nacional de Belas Artes, entre 1949 e 1954, e, na década de 60, em diversas exposições colectivas em galerias de Lisboa, Porto, Viana do Castelo, Angra do Heroismo, Funchal, com escultura em metal e com gravura. Também participou na Exposição de Gravadores Portugueses de 1955 e integrou o catálogo da Gravura, Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, de 1959. Trabalhos seus estiveram expostos em Gotemburg (Suécia), Madrid e Roma.
Faleceu em 1983.

Bibliografia
Humberto Sousinha Macatrão, "Jorge de Almeida Monteiro". Jorge de Almeida Monteiro, 1908-1983. Catalogo das Exposições. Museu Municipal do Bombarral, 1997

 
Fauno com viola. Cerâmica
Favela. Chapa de ferro
Fábrica. Linogravura
A Jarra Beethoven  


Em 1895, acedendo a uma encomenda de José Relvas, proprietário ribatejano com vastas relações na elite da cultura, Rafael Bordalo Pinheiro iniciou a concepção de uma peça de cerâmica dedicada a Beethoven. Os trabalhos de elaboração dessa peça - uma jarra de grandes proporções - foram complexos e demorados. Absorveram a atenção e o empenho de Bordalo e mobilizaram as capacidades dos melhores ceramistas que ainda o acompanhavam no seu atelier da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. No seu "Livro de Empreitadas", um desses operários, Avelino Soares Belo, deixou um rasto manuscrito dos passos dessa aventura por todos seguida com indisfarçada ansiedade. O próprio Bordalo registou num "Caderno de Notas" transcrito pela primeira directora do Museu que tem o seu nome em Lisboa, Julieta Ferrão, o andamento atribulado da operação.
[...]
Nascido em Bona em 1770, Beethoven contactou desde o berço com a música, para a qual cedo revelou um talento de excepção. Reconhecendo a necessidade de lhe proporcionar o contacto com grandes mestres, o seu protector enviou-o a Viena de Áustria em 1792. Nos três anos seguintes recebeu aulas dos mestres vienenses Haydn, Albrechtsberger e Salieri. Em 1794 compôs a sua primeira obra original, celebrada como um trabalho muito promissor. Em 1798, o príncipe Lobkowitz encomendou-lhe 6 quartetos para cordas.
Era uma encomenda prestigiosa mas exigente. Mozart e Haydn tinham elevado o género a grande projecção.
Nota sobre Bordalo, a Jarra e Beethoven
 
Lobkowitz, na altura em que desafiou Beethoven dirigiu encomenda idêntica ao velho mestre Haydn. O jovem músico aplicou-se com determinação durante os dois anos seguintes na composição dos quartetos, cuja edição, em 1801, significaria simplesmente o triunfo. O último quarteto a ser concluído terá sido o 4º, provavelmente de um só jacto, pois nunca foi encontrado o respectivo estudo prévio. A peça foi recebida com enorme entusiasmo, consagrando definitivamente o seu autor.
Foi esta a peça musical - para dois violinos, violoncelo e violão - que Rafael Bordalo Pinheiro escolheu para assinalar, 100 anos decorridos sobre a sua criação, a Jarra com que impressionou o mundo jornalístico da sua época.
 
Columbano e a loiça das Caldas  
Há quem assevere que Columbano (1857-1929), irmão mais novo de Rafael Bordalo Pinheiro, não só acompanhou em diversas ocasiões a actividade cerâmica deste nas Caldas da Rainha, como terá mesmo desenhado algumas peças. O nexo afectivo entre os dois irmãos parece ter sido bastante forte. Em 1885-1886, Columbano, regressado de Paris, passou uma temporada nas Caldas, com Rafael e Feliciano (outro dos irmãos) particularmente empenhados no arranque da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. De facto, a escritura da empresa foi registada em 30 de Junho de 1884, tendo o sector dos materiais de construção principiado os trabalhos em Setembro do mesmo ano. Em Abril de 1885, Rafael inicia a produção de louça artística e decorativa, pelo que a presença de Columbano nas Caldas não pode deixar de ser entendida como uma manifestação de apoio e até ajuda. Durante ese período, Columbano executa alguns quadros (um deles figurou na recente exposição do Museu do Chiado) e integra os trabalhos do Grupo do Leão expostos na galeria do Depósito da Fábrica em 1886 (Cf. Maria de Aires Silveira, in Pedro Lapa (org.), Columbano Bordalo Pinheiro 1874-1900. Museu do Chiado, 2007).
A peça cujo desenho ao lado se reproduz está datada de Março de 1884, ou seja do período durante o qual Rafael se dedicou em Sacavém e nas Caldas a ensaios de decoração cerâmica. Coincidência?
 

Columbano: Retrato de Rafael Bordalo Pinheiro. Placa cerâmica 25x25 cm. 21 de Março de 1884.

 
Este óleo sobre madeira, que é o primeiro auto-retrato de Columbano, data de 1884 e intitula-se "No meu atelier". O espaço surge povoado de objectos, entre eles uma talha certamente decorada pelo próprio pintor. Na exposição organizada em 1979 pelo Museu de Arte Contemporânea, para assinalar os 50 anos da morte do pintor foi exposta a talha, cuja acima também se reproduz, como obra pintada por Columbano. É sem dúvida a mesma peça do quadro de 1884. Quem sabe se uma talha da antiga olaria caldense?  
Dois retratos de Columbano: o primeiro, de D. José Passanha, 1885; o segundo de Joaquim Lourenço Lopes, de 1883. Este último feito em Paris, onde o pintor então se encontrava. Comum a ambas as telas é a presença, nas paredes das salas onde os retratados pousam, de pratos de loiça de inspiração palissy, presumivelmente da loiça popularizada pelas oficinas caldenses de Manuel Mafra, Gomes de Avelar, José Francisco de Sousa, antes de Rafael Bordalo dela se ter ocupado também.  
Origens históricas da louça genital das Caldas: uma hipótese de trabalho  

O estado da investigação do tema é aquele que descrevo aqui ao lado (O que eu andei... "a louça de motivos sexuais das Caldas, 6 de Outubro 2007). No decurso do debate sobre "Novos Patrimónios" promovido pela associação PH (28 de Setembro), apresentei a hipótese de existir uma relação entre o tratamento termal de doenças venéreas e a origem da olaria de inspiração genital. Formulei-a em diálogo com a Dr.ª Maria da Conceição Parreira Colaço, que no seu site (http://patrimonio.maisinfinito.net ) publicou um ensaio intitulado "Com a malandrice - canecas das Caldas".
Recordei as circunstâncias históricas em que a Europa se defrontou com uma epidemia de sífilis, exactamente em 1495, quando Carlos VIII, rei da França, tentou sem êxito conquistar Nápoles e os seus exércitos contrairam e propagaram a doença que por essa circunstância tomou o nome de "mal francês", ou "morbo gallico".
Em meados do século XVII, a medicina tinha aceite que as águas das Caldas continham azougue, isto é mercúrio, e nesse sentido seriam recomendáveis no tratamento da sifilis.
O médico portugês Madeira Arraes, formado em Salamanca, defendeu essa terapeutica em 1642 Na sua obra, Método de conhecer e curar o morbo galico considerou as águas sulfúreas como adequadas ao tratamento complementar do mercúrio e aludiu às águas de Lafões e Caldas da Rainha que conteriam "tanquia" ("porventura um sulfureto de arsénio").
O Provedor Jorge de S. Paulo, no seu livro O Hospital das Caldas da Rainha até ao Ano de 1656, admite explicitamente que as águas das Caldas são utilizáveis no tratamento da sifilis: "... e porque se experimenta passarem estas aguas por mineral de azougue são também o seus banhos medicinais para morbo galico, quando não está encasado nos tutanos ou em alguma parte do corpo" (vol. 1, p. 93). Dedica mesmo um capítulo às "Curas nos Enfermos do mal francês, ou boubas", no qual reporta 17 casos de cura. Na introdução deste inventário, escreve: "Esta perniciosa e asquerosa doença tem varias medicinas em os mais hospitais onde se admitem semelhantes enfermos, conhecida sua enfermidade; mas o medicamento de banhos só nestas águas cálidas se acham serem proporcionadas a este mal francês; porem conforme o Compromisso da Senhora Rainha se proibe admitir-se gente infeccionada deste maldito mal que a tanto sangue ilustre tem lançado a perder; e com haver esta proibição não faltarão enfermos que com a capa de outras doenças se aproveitam destas águas para sararem das próprias que os obrigam vir a elas, por medicamento mais suave de banhos, fugindo ao mais violento das estufas e azougues".
De facto, o Compromisso em que a Rainha D. Leonor determina a organização do Hospital das Caldas, datado de 1512, não elimina em concreto as doenças venéreas do tratamento no estabelecimento, referindo tão só que não deverão ser recebidos os portadores de "doença de qualidade que pareça incurável". De modo que a norma que permitia recusar (ou dificultar) a entrada no Hospital aos siflíticos deverá atribuir-se ao anátema lançado pela Igreja sobre este tipo de doentes, uma vez que esta atribuía a causa última do mal à prática de relações sexuais fora do casamento e para fins que não os da reprodução. Os portadores de "morbo galico" demandavam pois as Caldas em busca de cura e, ou conseguiam ludibriar o dispositivo de selecção e serem admitidos, ou recorriam ao banho nas águas que corriam das piscinas em vala que as conduzia até à zona da "Água Quente" (hoje Largo Conde de Fontalva).
O recurso à água termal para o tratamento da sifilis volta a ser abordado, no princípio do século XIX , por Valentim Sedano Bento de Melo, um médico de origem espanhola que iniciou funções no Hospital das Caldas em 1811, tendo sido seu administrador em 1834. Em 1813 publicou no Jornal de Coimbra uma Carta sobre a utilidade da água das Caldas nas moléstias venéreas onde aponta diversos casos em que o efeito das águas sobre sifilíticos - já longamente causticados por tratamentos à base de mercúrio - trouxe benefício e cura.
Na minha opinião, esta evidencia sustenta a possibilidade de aqueles que se deslocavam às Caldas em busca de alívio para a sífilis serem também clientes de oferendas votivas para Nossa Senhora do Pópulo com motivos genitais feitas em madeira ou cerâmica. No meu entender, tal hipótese merece verificação.
Devo acrescentar que no decurso do debate, a Dr.ª Maria da Conceição Colaço lembrou que em Nápoles, precisamente, existe um complexo hospitalar, com a respectiva Igreja, ambos consagrados a Santa Maria do Pópulo, concluido em 1523, designado Ospedale S. Maria del Popolo degli Incurabili . Curiosissimas coincidências...

Conceição Colaço: Com a malandrice
Jorge de S. Paulo: Curas do mal francês
A. S. Carvalho: Carta do Dr. Valentim Sedano Bento de Melo
 
Rafael Bordalo Pinheiro: 3 versões de "S. Jorge Combatendo o Dragão"  
Tudo começou como uma visita à exposição "No Caminho sob as Estrelas promovida pela diocese de Beja na Igreja Matriz de Santiago de Cacém. O convite partira de José António Falcão, coordenador geral da exposição, que me prometera uma "surpresa". De facto, como relato em "O que eu andei ...", foram várias as surpresas, a primeira das quais a própria exposição.
No fim da visita, José António Falcão apontou para uma vitrina onde se encontrava um "S. Jorge Combatendo o Dragão" ainda não referenciado. Trata-se de uma redução do conjunto escultórico "S. Jorge Combatendo o Dragão" que pode ser visto no Museu da Fábrica "Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro". De facto este trabalho tem cerca de 106 cm de altura, por 103 de largura, enquanto o de Santiago não terá mais de 25 cm. Assenta numa peanha, de dimensões sensivelmente identicas ao da figuração da cena de luta, e data de 1902. É pertença hoje do Museu Municipal de Santiago do Cacém, tendo originalmente sido encomendado por familiares do Conde de Avillez para o seu palacete da Rua da Carreira, naquela localidade do Alentejo.
Esta peça não constitui pois uma mera redução da peça que lhe serviu de matriz e que se encontra nas Caldas. Diversas adaptações e inovações foram introduzidas, resultantes umas da concepção global e da utilização de uma peanha, enquanto outras são o produto da imaginação de Bordalo e da sua percepção das circunstâncias da encomenda. Assim, por exemplo, a cena reflecte desde logo a ocorrência, no ano de 1901, da morte do 4º Conde de Avillez, de seu nome Jorge de Sousa Feio de Avillez, aos 31 anos.
Jorge de Avillez ficou conhecido pelas suas actividade de benemérito e de desportista, tendo sido o primeiro proprietário de um automóvel em Portugal, um Panhard & Levasseur de 1895. Era membro da Ordem de Cristo. O S. Jorge que, na peça de Santiago, trepassa o coração do dragão apresenta as feições do próprio Jorge Avillez, com a sua barba escura. Esta assimilação do Conde prematuramente falecido á figura lendária do cavaleiro que venceu o dragão testemunha com eloquencia o espírito bordaliano.
A imagem que aqui se reproduz foi obtida a partir de uma fotografia cedida por José António Falcão, a quem devo também outros esclarecimentos complementares.
Seguiu-se uma nova visita ao Museu da Fábrica de Faianças para verificar as relações entre os dois conjuntos escultóricos, e na tentativa baldada de obter uma data precisa. Fui acompanhado por Elsa Rebelo que me referiu a existência de uma outra versão, existente em Pombal, de que tomara conhecimento recente através de contacto da pessoa que tinha a seu cargo a guarda da capela onde se encontraria esse outro "S. Jorge Combatendo o Dragão".
Rumei pois a Pombal, depois de localizar a pessoa em questão, a Sr.ª D.ª Leopoldina Maricato, e com ela combinar o acesso à peça. Na Capela da Charneca, uma povoação de Pombal, distando da sede do concelho cerca de 3 quilómetros, deparei-me efectivamente com um "S. Jorge Combatendo o Dragão" encostado a uma das paredes laterais do pequeno transepto, preservado dentro de uma redoma de vidro.
Pelas dimensões, este "S. Jorge" está mais próximo do do Museu das Caldas, embora com diferenças. Tem mais altura (120 cm, contra 106 do das Caldas) e menos largura (96 cm, contra 103 do das Caldas). A peça está datada e assinada: RBP, 99.
Registei aspectos distintos na composição. A lança atinge o dragão na boca e não no coração, o que obriga a uma diferente colocação do animal relativamente ao cavalo. Aliás o dragão é de um tipologia distinta, aparecendo aqui como uma figura muito mais "diabólica" do que nas Caldas. O cavalo é apenas pintado e as feições do cavaleiro estão identificadas. A minha hipótese é que sejam as do indivíduo que encomendou a peça para capela.
Tratou-se, segundo pude apurar, de Manuel Gonçalves Feijão, um abastado proprietário da região, que mandou erguer a capela em 1898 para o povo da Charneca. Até 1971, o conjunto saía na procissão do 15 de Agosto, com as dificuldades decorrentes do peso da peça e da inadaptação a esse fim. Apesar de tudo, encontra-se em bom estado.
Os responsáveis pela manutenção da capela fixaram em pequenos textos a informação que puderam recolher, operando assim uma patrimonialização da peça de Bordalo, em cuja qualidade não escondem ter um genuino orgulho. O transporte do conjunto escultórico ficou na memória colectiva: teriam sido precisos oito dias para o carro puxado a bois ir até às Caldas e dali trazer o S. Jorge. Este pesava cerca de 12 arrobas (180 quilos), o que certamente muitas dificuldades criava aos que todos os anos o faziam sair da capela em andor para percorrer a aldeia em procissão. Um garrafão de 5 litros de vinho era o alento prometido pela comissão de festas aos 4 homens que se dispunham a carregar o santo. A devoção a S. Jorge, tão generalizada na região, deve-se, segundo me foi dito, à circunstância de ser um santo protector dos animais. Mas apesar de muitas das capelas do concelho de Pombal cultivarem a devoção a S. Jorge, dispondo de imagens alusivas, nenhuma se equipara à da Charneca, que tem outro porte e foi obra de um autor conhecido. Já foi, por isso, cobiçado pelo pároco de outra Igreja. Na Charneca, o santo, além de velar pela vida quotidiana do mundo rural, tinha uma outra função: depois da catequese os miudos batiam com a cabeça contra os cornos do dragão, assim se penitenciando e prevenindo disparates e malvadezas.
 
 

Capela da Charneca (Pombal)

Manuel Gonçalves Feijão
S. Jorge Combatendo o Dragão, na Procissão do 15 de Agosto (Charneca)
 
Rafael Bordalo Pinheiro: 3 versões de "S. Jorge Combatendo o Dragão"
São Jorge Combatendo o Dragão
Museu da Fábrica "Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro". Sem data (1898?)
São Jorge Combatendo o Dragão
Capela da Charneca (Pombal). 1899
São Jorge Combatendo o Dragão
Museu Municipal de Santiago do Cacém. 1902
São Jorge Combatendo o Dragão
Museu da Fábrica "Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro".
Pormenor do Dragão
São Jorge Combatendo o Dragão
Capela da Charneca (Pombal). Vista parcial
São Jorge Combatendo o Dragão
Capela da Charneca (Pombal). Cavaleiro
São Jorge Combatendo o Dragão
Capela da Charneca (Pombal). Pormenor do Dragão
Hansi Stael  

Nasceu em Budapeste em 1913 e faleceu em Londres em 1961. A formação artística obteve-a primeiro em Viena de Austria, na Escola de Artes e Ofícios, onde cursou artes gráficas, e depois em Budapeste, onde frequentou a Academia de Belas Artes.
A Guerra forçou-a a abandonar a Hungria. Até 1945, permanceu em Estocolmo, onde trabalhou como desenhadora de tecidos e ilustradora de livros e revistas. Em 46 veio para Portugal, onde desenvolveu uma larga actividade artística, na gravura, na pintura mural e vitral, na cerâmica e na ilustração.
Hansi Stael deixou-se fascinar sobretudo pelas actividades e tipos populares urbanos: as varinas de Lisboa, as mulheres da Nazaré, as procissões, os mercados.
Para conhecer um pouco melhor o papel desta artista na renovação da cerâmica caldense, pode consultar o texto e sobretudo ver as imagens sobre alguns dos seus trabalhos.

Revolucionou a cerâmica das Caldas
Imagens
 
 
Cencal 25 anos  
O protocolo que criou o Cencal - um Centro de Formação Profissional para o Sector da Cerâmica, como era então identificado - foi celebrado entre o Fundo de Desenvolvimento da Mão de Obra (FDMO), a Associação dos Industriais da Região das Caldas da Rainha (AIC) e a Associação Portuguesa dos Industriais da Cerâmica (APC), a 14 de Dezembro de 1981. A AIC foi também constituída nesse mês de Dezembro e nesse ano de 1981, só mais tarde (em 1984) tendo adoptado a designação de Associação Industrial da Região Oeste (AIRO). A APC fundiu-se anos mais tarde com as associações regionais do barro vermelho, dando origem à APICER. Recorde-se ainda que o FDMO tinha sido criado em 1962, no Ministério das Corporações e Previdência Social, com a missão de enfrentar as reestruturações industriais em curso no país. O Instituto de Emprego e Formação profissional (actual IFP), criado em 1979 pelo Governo de Maria de Lurdes Pintasilgo, viria a absorver o FDMO em 1982. Uma instituição inovadora
 
Azulejo na net  
Um excelente link, da autoria de dois investigadores de temas de azulejaria com vasta obra publicada: Maria Isabel Almasqué e António Barros Veloso Azulejonet
História da Cerâmica das Caldas da Rainha: constantes e linhas de força  
Uma comunicação à edição de 1999 das Jornadas Ibéricas de Olaria e Cerâmica promovidas pela Câmara de Reguengos de Monsaraz, em S. Pedro do Corval Comunicação (pdf)
Caldas da Rainha e Rafael Bordalo Pinheiro  

A povoação das Caldas da Rainha formou-se a partir de um acto de uma Rainha, D. Leonor, que, entre 1484 e 1525, patrocinou a criação de um hospital para doenças susceptíveis de tratamento termal, junto de um afloramento de águas sulfúreas nas suas terras do termo de Óbidos. A evolução histórica da vila foi marcada por estas especificidades: existência de uma instituição forte, detentora de vasto património; atracção da corte e, consequentemente, das elites politicas e económicas do País. Na segunda metade do século XIX, a estabilização da sociedade liberal potenciou estes dois elementos. A frequência termal diversificou-se socialmente e ampliou-se geograficamente, numa altura em que as classes médias descobriam os prazeres da "mudanças de ares", isto é das férias e do turismo.

A vila que, em 1884, Rafael Bordalo Pinheiro encontrou, quando aí se instalou como director técnico da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, estava a crescer rapidamente: 2691 habitantes em 1878, 4687 em 1890. O caminho-de-ferro (inaugurado em 1887) transformava radicalmente o volume e o ritmo de relações da vila e da região. O comércio descobria novas áreas de negócio: a hotelaria e a restauração, por exemplo. Os serviços qualificavam-se. O Hospital dotava-se de um plano ambicioso de modernização e a vila enfrentava os desafios de um urbanismo mais exigente em termos de abastecimento, higiene e salubridade públicos, de disponibilidade de equipamentos colectivos (novo hospital de doenças gerais, matadouro, pavilhões destinados a Balneário) e de cultura e estética citadinas (novas praças e novos bairros, um parque com lago e campos de jogos, teatro).

A Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, com a suas novidades tecnológicas e empresariais, integrou o lote dos factores do desenvolvimento da vila. Deu uma outra envergadura à indústria cerâmica até aí assente exclusivamente na pequena indústria de tipo artesanal e justificou a implantação do ensino profissional.

A década de 1890 forçou a paragem de alguns destes projectos, por efeito da crise financeira do Estado. A Fábrica de Faianças viu comprometida a sua secção industrial. O Hospital Termal teve que prescindir de parte do seu programa reformista. Preocupados, comerciantes e industriais caldenses fundaram uma Associação para melhor fazerem ouvir a sua voz e exigirem participação nas decisões locais. Rafael foi o seu primeiro Presidente da Assembleia Geral.

Bordalo foi um observador atento da vida local que elevou frequentemente a tema das suas caricaturas e desenhos. Nas páginas de O António Maria (sobretudo 2ª série) Pontos nos ii e Paródia são inúmeras as referências a personagens e factos da vida da local. As Caldas da Rainha tiveram em Rafael Bordalo não apenas um espectador atento, mas sobretudo um interveniente. Os seus desenhos, dando nota de factos significativos ocorridos na vila, vão registando aspectos da vida da Fábrica e da actividade cerâmica do artista.

Estadias régias, como a de Agosto de 1886, tiveram reportagem desenhada: a chegada, uma pescaria na Lagoa, uma visita à Fábrica (26 de Agosto). A abertura do caminho-de-ferro foi objecto de crónica bem-humorada (30 de Junho e 7 de Julho de 1887). A inauguração do novo hospital de Santo Isidoro (16 de Março de 1893) forneceu o ensejo para uma justa homenagem de Bordalo ao projectista, o administrador do Hospital Rodrigo Maria Berquó (cujos actos foram, no entanto, alvo regular de crítica impiedosa). Episódios locais, como uma récita de amadores (12 de Fevereiro de 1892), uma burricada (26 de Agosto de 1886), um descarrilamento sem consequências graves (10 de Janeiro de 1889), um concerto no Clube de Recreio (28 de Julho de 1887) ficaram para sempre lembrados. Personagens da sociedade caldense foram retratadas com simpatia, como o médico José Filipe de Andrada Rebelo (28 de Julho de 1887 e 19 de Julho de 1888), com ironia, como os deputados pelo círculo das Caldas Pinheiro Chagas (30 Julho 1885), Gomes Neto (2 de Junho de 1887) ou o capitão Machado (7 de Julho de 1887), ou mesmo acrimónia, como os administradores Francisco Andrade Pimentel (por exemplo: 9 de Julho 1885 e 2 de Julho de 1886) e Rodrigo Berquó (por exemplo: 18 de Junho de 1896 e 10 de Janeiro de 1895). As vicissitudes da fábrica e os trabalhos cerâmicos foram também assinalados: exposições de produtos (como em 20 de Fevereiro de 1886 ou 26 de Junho do mesmo ano), inaugurações de equipamentos ou instalações (como em 10 de Setembro de 1885 ou 9 de Agosto de 1888).

A presença das Caldas na obra gráfica de Bordalo sublinhou, assim, a presença de Bordalo nas Caldas. Acrescentou uma nova e singular dimensão à que lhe era reconhecida como ceramista. Talvez por isso, os caldenses se tenham cedo apercebido de que a presença de Bordalo na vila constituíra um momento ímpar da sua história. Pouco depois do falecimento do artista, decidiram dar o seu nome a uma rua antiga da vila. E escolheram para testemunho dessa homenagem precisamente a primeira rua da vila, a chamada Rua Nova. Por este gesto simbólico, Rafael Bordalo Pinheiro ficou associado à fundação da cidade.

João B. Serra

Bibliografia

João B. Serra, 21 Anos, Pela História. Caldas da Rainha, Estudos, Notas e Documentos. Caldas da Rainha, Património Histórico-Grupo de Estudos, 2003.

Nicolau Borges (coord.), Bordalo nas Caldas. Obra Gráfica. Caldas da Rainha, Património Histórico-Grupo de Estudos/Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, 2005.

No centenário da morte de Rafal Bordalo Pinheiro
O Ultimatum visto por RBP
Á sombra da Nação
Moldar um País
 
 
A Cerâmica Neo-Palissy das Caldas  

O centro cerâmico caldense foi alvo de análise no Inquérito Industrial realizado por ordem do Ministro das Obras Públicas em 1881 e publicado no ano seguinte. Nele se apontam diversas carências e defeitos ao sector. "Não obstante estas imperfeições", escreve-se, há "um ramo da cerâmica [caldense] que tem sido extremamente apreciado no estrangeiro, em todas as exposições a que tem concorrido. Referimo-nos ao palissy das Caldas" .

Esta designação cobria uma produção cerâmica que a, partir da década de 60 do século XIX, se radicara na vila. A sua fonte longínqua de inspiração era a obra de Bernard Palissy (1510-1590), que deixara à cerâmica um legado feito de intensa investigação e experimentação científica e técnica e de profunda inovação no seu vocabulário artístico.

No século XIX, a cerâmica de Bernard Palissy tornou-se objecto de culto, fascinando inúmeros ceramistas na Europa. A sua redescoberta deu-se primeiramente em Tours, em 1843, quando Charles-Jean Avisseau (1795-1861) se deparou com uma travessa sobrevivente da actividade daquele visionário seiscentista.

Em Palissy, Avisseau encontrou a ilusão, tornada possível através de uma técnica de decoração e, sobretudo, através da cor. "A cor pode, em cerâmica, atingir um nível de qualidade tal que nos dá a ilusão do verdadeiro" foi a principal conclusão de Avisseau, em contacto com as peças de Bernard Palissy.

Em breve, outras oficinas chamaram a si a influência de Palissy: em Paris, em Beaune, em Limoges, em Agoulême. Depois o movimento ultrapassou as fronteiras francesas, atravessou o mar, até Inglaterra, e os Pirinéus, até Portugal. Trata-se de um movimento no qual se tem visto, nomeadamente em França, a origem da cerâmica artística moderna.

Nas Caldas da Rainha, o "neo-palissy" teve em Manuel Mafra o primeiro cultor, nos anos 60 do século XIX, a que se seguiram outros ceramistas como José Francisco de Sousa (praticamente contemporâneo de Mafra) e José Alves Cunha (finais da década de 1860), que exportaram para Espanha, França, Inglaterra, Brasil e Estados Unidos.

Bordalo Pinheiro, formado no gosto e na vivência do naturalismo, que propunha uma transposição mimética da natureza no objecto artístico, não podia deixar de se reconhecer nesta louça das Caldas, com forte presença de elementos da fauna e da flora, compartilhando com ela afinidades e coincidências. Afinidades e coincidências aliás reforçadas pela procura do pitoresco, conjunto de elementos característicos da paisagem natural e social de cada região. Assim, a louça decorativa bordaliana recuperou as tradições formais e narrativas da olaria caldense, os vidrados de reflexos fortes e a cerâmica de trompe l'oeil, à maneira de "palissy" que Manuel Mafra e outros ceramistas caldenses tinham aprofundado e difundido.

 
Bernard Palissy
Charles Jean Avisseau
Manuel Mafra
Rafael Bordalo Pinheiro
Olaria de Carapinhal e Bajouca  
Um estudo "esquecido" de Ana Pires Olaria de Carapinhal e Bajouca
Leda e o Cisne: mito, artes e cerâmica  

No ano em que as águas do Guadiana, retidas em Alqueva, chegaram a Monsaraz, a edição de "Museu Aberto" celebrou o acontecimento. Ferreira da Silva foi o artista convidado. Em Maio, mudou-se para S. Pedro do Corval. Na Olaria "Guimarães e Velho" compôs as peças com que viria a formar uma instalação cerâmica de grande dimensões, apresentada em 20 de Julho, em Monsaraz. Tema escolhido: Leda e o Cisne.

Acompanhei o trabalho de Ferreira da Silva e tomei à minha responsabilidade a parte do catálogo que lhe dizia respeito. Quatro anos volvidos, reuni as fotografias e as observações que então registei e apresentei-as numa sessão organizada pelos alunos do 4º ano do Curso de Animação Cultural e dedicada ao tema das relações entre artes, sociedade e erotismo. Na circunstância, procurei informação sobre as origens do mito de Leda e o Cisne e a sua evolução na antiguidade. Descobri então que de Leonardo da Vinci a Henri Matisse e de Vieira Portuense a Paula Rego, as artes plásticas do Ocidente se tinham deixado fascinar pela história ora divertida ora assustadora, ora inocente ora perversa dos amores entre um imortal e uma bela mulher. A convite da Livraria Loja 107 apresentei no "Pópulos" os resultados desta pesquisa.

O texto que agora publico aqui é uma breve nota sobre o mito e uma apresentação sumária da instalação de Ferreira da Silva. Desenvolvimentos ficarão para outra oportunidade.

Mito, artes e cerâmica (texto e fotos)
Catálogo Monsaraz Museu Aberto 2002
Ferreira da Silva  

Nasceu no Porto, em 1928. Ali iniciou a escola primária que viria a concluir em Coimbra, quando a família aqui se fixou, em razão do trabalho do Pai. Este era litógrafo e desenhador gráfico.

Em Coimbra, o jovem Luis Ferreira da Silva ingressou na escola técnica Avelar Brotero, onde foi aluno de José Contente, desenhador, pintor, gravador, e António Vitorino, aguarelista, natural das Caldas, responsável pelo curso de pintura cerâmica.

É também em Coimbra que começa a trabalhar, adolescente ainda, como pintor cerâmico, na "Coimbra Frutuoso", localizada nas Lajes. O passo seguinte levá-lo-à até ao Bombarral, à "Cerâmica Bombarralense", pelos seus 16 anos.

Jorge de Almeida Monteiro, o director técnico da "Cerâmica Bombarralense", apercebeu-se da sua vocação e animou-o. Pôs à sua disposição uma prensa de gravura. Monteiro recebia as visitas dos artistas Júlio Pomar e Alice Jorge, Vasco Pereira da Conceição e Maria Barreira. Os dois primeiros interessavam-se pela cerâmica. O jovem Luis Ferreira da Silva travou conhecimento com o casal. Contactou igualmente com João Fragoso que viera orientar o desenho de uma produção de azulejos destinada ao novo Quartel das Caldas. A liberdade de mão do escultor e as inovações que introduziu na tradição do azulejo despertaram-lhe a atenção.

O ambiente cultural que se respirava no círculo de Almeida Monteiro era marcado pelo neo-realismo. Ferreira da Silva identifica-se com esta corrente estética e ideológica. Pomar aprecia os seus trabalhos na gravura e leva alguns até aos salões da Sociedade Nacional de Belas Artes.

No Bombarral manteve-se cerca de quatro anos, até ao serviço militar. Cumpriu ano e meio, em Coimbra. Regressou depois ao Bombarral, mas por pouco tempo, pois a fábrica sofreu um incêndio.

Encontrou trabalho em Alcobaça, como pintor cerâmico, primeiro numa cerâmica da Vestiaria, a "Vestal" (onde se fazia a chamada "louça de Alcobaça") e depois na "Olaria de Alcobaça", uma empresa de que o Prof. Vieira Natividade era um dos sócios.Na "Olaria" trabalhava-se com pasta branca calcítica. Foi aí que Ferreira da Silva se sentiu tentado a romper com a produção corrente das fábricas de cerâmica e tentou as primeiras peças criativas.

Pinto Ribeiro, fundador e director da Secla, descobriu-o então, convidando-o para chefiar a secção de pintura. A Secla, criada em 1947, era uma grande empresa, uma das maiores na faiança, na região, e nela se respirava uma atmosfera mais evoluída e exigente técnica e artisticamente. Isso atraiu-o. Estávamos em 1954.

Na Secla, conheceu Hansi Staell que desenhava modelos para a produção. A artista, de nacionalidade húngara, consolidara uma viragem cultural na empresa, que levara ao abandono do padrão tradicional da louça das Caldas em favor de novos conceitos de design. [...]

Biografia breve e nota bibliográfica
Ferreira da Silva - Out 2006
Ferreira da Silva - instalação em obra, junto ao Hospital das Caldas
Herculano Elias  

Herculano Eias deixou-se seduzir pela miniatura, a ponto de a ela ter sacrificado inspiração e desejo criador. Os cânones da miniatura e o regime de encomenda que lhe está associado, no dia a dia do atelier, são de facto pouco favoráveis à espontaneidade, uma vez que promovem o rigorismo da representação, postulam o reconhecimento imediato do objecto e não se compadecem com a multiplicação de modelos. Por definição, o catálogo do miniaturista deve permanecer estável, pois uma galeria de figuras e composições relativamente fixa constitui para o cliente uma garantia de que cada novo exemplar manterá as qualificações dos que o precederam.

Não se quedou, no entanto, Herculano Elias, na perfeita continuidade de um género definido duas gerações antes da sua. Além de reinterpretações e actualizações dos temas "clássicos", acrescentou novos temas e sobretudo efectuou aprofundamentos tecnológicos, para os quais foram decisivos conhecimentos e experiências obtidos no meio fabril evoluído onde trabalhou (Secla, anos 60 a 80). Merecem destaque, neste aspecto, as novidades que logrou nos patinados e na composição de cenas complexas, como a dos presépios.

Nascido em uma família de ceramistas, neto de um pequeno industrial de cerâmica, Herculano Elias adquiriu uma sólida preparação no âmbito dos processos cerãmicos quer tradicionais quer modernos. Para tal contribuíu, em primeiro lugar, o contacto directo com a actividade cerâmica da oficina de seu avô Herculano Elias, um industrial que na transição do século XIX para o século XX fundou uma unidade produtiva de faiança tipo "palissy das Caldas". Em segundo lugar, como já foi referido, o contacto igualmente directo com a actividade escultórica do seu tio-avô Francisco Elias, o miniaturista.

Das relações familiares deste último resultantes de um segundo casamento, fazia parte o escultor João Fragoso, natural das Caldas da Rainha, em cujo atelier, nos anos 40, em Lisboa, o jovem Herculano Elias estagiou por algum tempo, após a frequência da Escola Industrial Rafael Bordalo Pinheiro. Nos anos 60, Herculano Elias ingressa na Secla, uma grande unidade, onde a inovação industrial se aliava a um conceito igualmente inovador de integração da arte e do design na actividade cerâmica empresarial. Na Secla, Herculano Elias percorreu todos os passos da formação da peça, desde a pintura até aos vários tipos de design - mais criativos e livres ou mais interpretativos e sujeitos a condicionantes rígidos da procura. Essa marcha de aprendizagem e maturação dos processos industriais permitiu incorporar na sua cultura cerãmica influências provenientes de disciplinas e estéticas distintas das que recebera por contacto familiar.

A cidade e os seus museus exibem alguns exemplares que pontuam a viagem do autor pela cerãmica, ao longo da segunda metade do século XX: painéis decorativos de interior (como o da cervejaria "Camaroeiro Real), e exterior (como o da sede dos Bombeiros); escultura pública (como no caso da 4 estações localizadas na rotunda da Rua Leonel Sottomayor); azulejos originais (como os do estabelecimento óptico Ramiro) ou réplicas (como os do monumento a Franciso Elias), serviços de louça utilitaria, peças decorativas (pertencentes ao Museu da Secla).

Herculano Elias na tradição cerâmica caldense (pdf)
Herculano Elias - Secla
Herculano Elias - Ajulejos Optica Ramiro (anos 70)
 
Herculano Elias - estudo para painel de azulejos (1960)
 
 
Herculano Elias - Praça das Caldas (miniatura, 1995)